Há muito tempo a avó foi ensimesmando e aos poucos, perdendo a memória. Não lembrava do dia anterior, da ação anterior, da palavra anterior. Era preciso alguém que cuidasse dela, pois já não distinguia muito bem os objetos. Dava-lhes outros nomes, e era dada a achar que a água do vaso sanitário era encantada.
-- ela faz as coisas voltarem.
Também tinha ímpetos de querer pular a janela.
-- do lado de lá tem muita vida, dizia.
Puseram grades na janela.
Além desses cuidados especiais, a avó costumava contar todos os dias a mesma história: que foi casada com um general, teve treze filhos, que dois deles morreram na guerra como bravos heróis e que os girassóis lhe traziam uma grande tristeza. Na família ninguém mais tinha paciência de ficar tomando conta dela. Ter de ouvir a mesma história várias vezes ao dia e se atentar para que não mexesse na água do vaso sanitário. Henrique, de 9 anos, era o único que sobrara para cuidar da avó. Seus pais o obrigaram. Detestou a idéia, mas não havia escolha. Prometeram uma boa mesada.
-- você sabia que eu gosto de docinho?, perguntava a avó ao neto.
Ele não respondia. Ficava sentado entretido com os joguinhos do celular.
-- pois é, eu gosto demasiado de docinho.
Henrique nem ouve.
-- você nunca fala?
Silêncio.
-- como você se chama?
Meio irritado, responde.
-- Henrique.
-- ah, você fala sim. E tem uma voz bonita! E se fala, ouve. Vou te contar uma história.
E contava. Dia após dia a mesma história. Enquanto contava, se dirigia ao banheiro.
-- Vó, não vai mexer na água do vaso, viu?! É suja!
Ela parou na hora e ficou pensativa. Virou a cabeça na direção do neto, o olhou bem e disse:
- Vó?! Mas eu não sou sua vó. Te conheci agora.
E ficou espantada. Henrique, para não se estender no assunto...
-- Ah, é verdade. Eu devo estar ficando louco.
Ela até esqueceu que estava indo ao banheiro e voltou. Os dias passavam e ela contava para Henrique a mesma história, que entretido com seus joguinhos no celular, mal escutava. Até o dia em que foi tentar impedi-la de mexer na água do vaso sanitário e o celular caiu lá dentro e pifou.
Como não tinha mais como se distrair com seus jogos eletrônicos, começou a levar alguns brinquedos para não ter que dar ouvidos àquela história da avó. O primeiro, foi um caminhão de madeira.
-- que caminhão bonito você tem, menino. Me faz lembrar uma história. Vou te contar.
E começava a mesma história. Só que agora o caminhão fazia parte dela porque dizia avó que um de seus filhos teve um igualzinho.
Henrique gostou do que ouviu. Cada vez que ele trazia um brinquedo, aquela história que ninguém mais suportava ouvir ganhava uma nova roupagem e ficava mais e mais instigante. Foi assim com a bola, com o carrinho, com a peteca e com todos os outros brinquedos e objetos. E de todo dia ela perguntar como se chamava, Henrique passou a inventar nomes. Davi, Lucas, Nivaldo...
Os nomes também despertavam novas ramificações naquela velha história. Com o tempo, o menino começou a perceber que o que a vó contava fazia parte da história de seu pai, de seus tios, de seu avô. Quando perguntava seu nome, ele passou a dar o nome de um parente e assim essas novas histórias iam entrando na história.
-- você me faz lembrar meus netos e meus filhos.
-- e onde eles estão?
-- morreram
-- todos?
-- sim. Não sobrou nenhum.
-- morreram de quê?
-- morreram de não mais gostar de mim.
Henrique parou por um tempo e ficou pensando.
-- se você quiser eu posso ser seu neto.
-- melhor não. Não quero que você morra.
Ela percebeu que ele ficou tristinho.
-- mas pode me chamar de vó, se quiser.
-- tá bom. Vamos brincar na pia do banheiro?
-- eu faço os barquinhos.
-- eu quero ser o comandante!
-- só se eu puder ser a mocinha!
Não foi difícil para Henrique perceber que era preciso morrer a cada noite, ao despedir-se da avó, para renascer no dia seguinte com outro nome e trazendo mais objetos para que pudesse ouvir uma nova mesma história.
Autoria: Everson Bertucci
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