terça-feira, 9 de dezembro de 2008

apesar da pouca luz
nos vimos
apesar da excepcionalidade
nos olhamos
apesar da dúvida
o toque
apesar da ocasião
nos escolhemos
apesar de uma só noite
inesquecível
apesar da platéia
apenas uma dupla no palco
apesar do zíper
saciamos a sede
apesar do pouco
um gosto doce de continuidade.

Autoria: Everson Bertucci

UTOPIA

Quero um mundo
Em fotografias antigas
Onde eu mereça uma pintura
Receba rosas vermelhas
E uma taça de vinho
Um mundo
Sem pena
Sem medo
Sem dor
Nem ilusão
Um mundo
Em que o céu seja azul
As nuvens, coloridas
E estrelas cadentes
Caiam só para mim
Um mundo
De olhos fechados.

Autoria: Everson Bertucci

A UNHA DO DEDÃO DO PÉ DE DEUS

Brilhando
Fascinando
Iluminando o meu sorrir exagerado
Por entre a rua curva
Do meu interior acolhedor
(responsável pelo meu metamorfosear).
De mãos dadas com a sabedoria
Que por instantes deixa-se guiar
Por meu chulo prosear
E em momentos tão sublimes
Só ela mesma para enxergar
A unha do dedão do pé de Deus
Que clareia o nosso caminhar.

Autoria: Everson Bertucci

ESCURECEU

Escureceu

Tempo fechô
Chuva caiu
Terra molhô

Vela apagô
Nenê chorô
Mainha doeceu
Gado berrô

Vóinha assustô
Num acreditô
Painho chegô
Grito calô

Nenê dormiu
Voinha rezô
Chuva parô
Vento soprô

Coisa piorô
Coração disparô
Coruja pio

Escureceu.

Autoria: Everson Bertucci

MUITO GENTIL

Caminho por São Paulo
Prestando atenção em gentes
Que nem sei o nome

Gente bem Gente
Gente mal Gente
Gente não Gente
Quanta gente

Gente dormindo Gente
Gente acordada Gente
Gente sonhando Gente
Estranha gente

Gente esbarrando Gente
Gente apanhando Gente
Gente fugindo Gente
Sofrida gente

Gente comendo Gente
Gente não-comendo Gente
Gente engolindo Gente
Faminta gente

Gente lutando Gente
Gente brigando Gente
Gente roubando Gente
Bandida gente

Gente não-sendo Gente
Gente estudando Gente
Gente decifrando Gente
Analfabeta gente

Gente ficando Gente
Gente namorando Gente
Gente casando Gente
Solitária gente

Gente querendo Gente
Gente buscando Gente
Gente olhando Gente
Cega gente

Gente parada Gente
Gente chorando Gente
Gente ferida Gente
Seca gente

Gente sem-tempo Gente
Gente apressada Gente
Gente nervosa Gente
Estressada gente

Gente viajando Gente
Gente voando Gente
Gente ensinando Gente
Pobre gente

Gente assistida Gente
Gente filmada Gente
Gente fingindo Gente
Alienada gente

Gente julgando Gente
Gente cuidando Gente
Gente falando Gente
Preconceituosa gente

Gente bebendo Gente
Gente fumando Gente
Gente cheirando Gente
Revoltada gente

Andando por São Paulo
Olho muita gente
Vejo pouca gente
Enxergo nada, gente.

Autoria: Everson Bertucci

O DIÁRIO DE ALICE - EPISÓDIO 6 - orgulho pouco é bobagem

Diário, fui dura demais com você. Queria pedir desculpas. É que eu não me encontrava muito bem. Você seria capaz de perdoar? Brigada! Ai, diário, é ele. Não sei o que acontece. De novo a mesma história. Ah, aquela! É, de novo a grosseria. Mas eu não sou grossa. Você acha que eu sou grossa, diário? Brigada! Ainda bem que você me entende. Brigamos. Ele me deixou esperando no cinema. Chegaram a dizer que ele não passava de uma invenção minha. Você acha que eu seria capaz de inventar uma pessoa? Brigada! Ele não foi. Quer dizer, ele foi até bem próximo, mas se sentiu ofendido e voltou pra casa. Eu? Assisti o filme. Tão bonito. Era um filme de amor. Fiquei tão emocionada. Um filme bonito, sabe? Você também iria gostar. Eu tentei ligar pra ele de novo, mas ele desligou o celular. Eu entendo, ele tinha razão pra estar nervoso. Ele precisa entender que eu também estava com as minhas razões. Ele se atrasou demais e ainda tentou impor condições. Talvez tenha sido dura demais, mas ele precisa saber quem sou desde já. Não gosto de relacionamentos superficiais. Não, eu nunca tive um relacionamento, também não precisa jogar isso na minha cara, né, diário?! Ah, entendi! Ele queria que eu perdesse o filme e o esperasse. Ele que se programasse melhor. Diário, você acha que eu fui muito dura? Brigada! Isso foi ontem. Hoje é sábado e ele ainda não me ligou. Você acha que é o fim? Brigada!

Autoria: Everson Bertucci

O DIÁRIO DE ALICE - EPISÓDIO 5 - término

Não tenho mais nada pra te dizer, diário.

O DIÁRIO DE ALICE - EPISÓDIO 4 - a causa

Ele se redimiu, diário. Estamos bem. Vamos ver um filme hoje. Vai dar tudo certo. Depois do filme vamos fazer alguma coisa legal. Conversar, talvez. Passear de mãos dadas. Essas coisinhas. Ainda bem que ninguém te lê. Só nós dois sabemos dessas coisas. É que tem coisas que se outras pessoas lessem, não entenderiam. Nada supera a vivência, sabe como é, né, meu diário querido!?

Autoria: Everson Bertucci

O DIÁRIO DE ALICE - EPISÓDIO 3 - celular

Consegui dormir, diário. Um pouquinho magoada, porque eu queria que ele tivesse ligado. A gente sempre quer que eles liguem primeiro, sabe como é, né diário?! Dormi pensativa, mas profundamente. Tão profundamente que ao levantar para ir ao banheiro, de manhãzinha, por volta das seis horas, olhei para o celular, para ver as horas. Não, diário, eu deixei ele ligado para carregar. A bateria estava fraca. Aí, eu olhei para o celular e vi: “TRÊS LIGAÇÕES NÃO ATENDIDAS ÀS 2H DA MANHÔ. Eram dele, diário. Ele me ligou primeiro! Achei justo. Ah, desculpe, ele está me ligando, preciso atender. Depois a gente continua, tá?

Autoria: Everson Bertucci

O DIÁRIO DE ALICE - EPISÓDIO 2 - dúvida

Oi, diário! É sobre ele de novo. Dormi bem, mas talvez não consiga dormir tão bem essa noite. Oi? Ah, a gente está se dando bem. (orgulhosa) Ele me liga todo dia. (decepcionada) Queria que ele não me ligasse tanto. Oi? Não, não posso falar isso pra ele. Ora, porque se ele parar de ligar acho que eu não vou gostar. Ah, diário, eu sei que eu tô confusa. Nós brigamos. Por bobagem. Ele fala que eu sou grossa, estúpida. Mas eu não sou grossa. Eu não sou. Imagina, eu grossa. Você acha que eu sou grossa? Brigada! Ah, ele expôs sua opinião em relação a um comentário que eu fiz relacionado a um amigo meu e a partir deste comentário ele foi grosseiro e eu dei uma resposta direta que ele não gostou. Eu não fui grosseira, mas ele disse que eu fui. Mas eu não fui, diário, não fui. Eu juro. E quando ele fica magoado não há nada que faça ele voltar ao normal. Você acha que eu sou grossa, diário? Brigada! Eu tentei reverter a situação. Tentei mudar de assunto, mas com ele não dava. Parece criança boba batendo na mesma tecla e quanto mais eu falava, mais ele fica nervoso “Você é grossa! Você é grossa!”. Haja paciência, diário! Comecei a me irritar um pouquinho. Acho que até alterei minha voz. E enquanto eu falava ele me entrecortava com “Boa noite!” em tom de “vou desligar” e eu continuava, e ele “Boa noite!” numa ironia! “Você não pode falar assim comigo, vamos conversar!?” “Já disse: Boa noite!” e então... “Boa noite” desliguei... depois dele, claro. Decidi que não vou ligar mais. Se ele quiser que me ligue. Mas que eu não ligo, não ligo. Gosto tanto de conversar com você, diário. Você é o único que me entende. Mas agora preciso tentar dormir. Ah, só mais uma coisinha... eu sei que você está com sono. Você acha que eu sou grossa? Brigada!

Autoria: Everson Bertucci

O DIÁRIO DE ALICE - EPISÓDIO 1 - exibição

(bem menina e dissimulada) Oi, querido diário! Tudo bem com vc? Eu? Ah, estou com um pouquinho de sono. Não dormi direito essa noite. Não, não estou reclamando, não é isso. É que tive o sono interrompido. Achei que era sonho. Oi? Ah, é que em plena madrugada ouço um toc-toc na janela e uma voz chamando meu nome. Acordei assustada, diário, isso nunca acontece. Perguntei quem era e ouvi "sou eu" "eu, quem?" "Eu, oras. Abra a porta". E assim, meio tonta, por causa do sono, abri a porta meio assustada entre o real e o irreal e era ele, diário. (convencida) Era ele. Fiquei tão surpresa! Olhei pra ele e "está louco?" "por você". (satisfeita por despertar curiosidade) Não estou agüentando, preciso dormir, diário. um beijinho, tá?

Autoria: Everson Bertucci

O MILAGRE DO VÔO

Essa é a história de Dona Tiana. Mulher sofrida. Criada no interior, num vilarejo chamado Mirante dos Montes. Era conhecida por todos do vilarejo. Tinham medo dela e a isolaram. Ninguém ousava dirigir-lhe palavra. Detestavam-na. Diziam que era malfadada, monstra, matadora de anjo. O que todos falavam era que Dona Tiana havia, há muito, matado seu filho. Nunca acreditaram na verdade. Nunca quiseram acreditar.
Dona Tiana sofria muito com a morte do filho. Vivia apenas por viver. Ia levando – como dizem nos vilarejos. Nunca percebeu nada em relação às pessoas. Acreditava em Deus e esperava a morte. Até que, depois de anos, quando menos esperava... engravidou. O marido de Dona Tiana não quis saber. O medo de perder outro filho era insuportável. Acovardou-se.
-- Teu pai foi viajar, mas ele volta, viu Nenê!? Ele volta – dizia ela, para o ventre.
Era menos doloroso.
O Nenê nasceu. Fraquinho, minguadinho. Dona Tiana comia o que conseguia plantar e como não tinha ninguém... teve sorte do Nenê ter nascido com vida. E assim, viviam doentes, mãe e filho. Acreditava também nas ervas que plantava, mas o caso se agravou. E numa noite de Natal ela resolveu levar seu Nenê para a cidade, para gente entendida cuidar. Foi de barco (único transporte existente). Com seu terço no pescoço e o Nenê nos braços - todo cobertinho, para não piorar ainda mais – seguiu para a capital.
O barqueiro se convenceu em levá-la de graça, por pena da criança. Fosse por ela... que morresse! Foi logo cumprimentando todo mundo, sempre com seu jeito alegre, de bem com a vida. Depois que nascera o Nenê nunca mais se permitiu um dia de tristeza. Ele era sua vontade de viver apesar da doença, das febres, da fome, de tudo que há de pequeno nesse mundo. Sua esperança era maior que qualquer doença, que qualquer mesquinharia humana.
O primeiro a cumprimentar Dona Tiana foi um bêbado. Um mendigo maltrapilho, que na bebedeira conversava com seu único amigo. Conversavam muito, brigavam até, mas não se separam. Todo mundo estranhava aquilo tudo. Ninguém via o tal amigo, somente o bêbado. Ninguém via o invisível.
-- Louco!
A partir de então a cidade passou a não vê-lo, assim como não viam Dona Tiana. E o bêbado conversava muito com seu amigo invisível, que dizia ser Papai Noel.
Dona Tiana sentou-se ao lado de uma jovem, que pelos trajes - via-se, claramente - não era dali. Nem sequer olhou para Dona Tiana. Não a conhecia, nem queria. Estava com raiva. Tinha vindo passar o natal com uma tia, mas não suportou o tédio e o nada-que-fazer do interior, por isso voltava. Além de tudo, estava muito perturbada por estar no mesmo barco que um bêbado. Até tentou sair do barco, mas o barqueiro foi bem claro.
-- A próxima é só amanhã.
Foi obrigada a seguir viagem.
-- Tudo, menos passar a noite nesse lugar – murmurou a jovem.
Na ponta do barco, um rapaz, está parado, observando o que acontece. Antes que todos entrassem, ele havia acendido velas em torno do barco e se posicionara na ponta, de onde observava tudo. Tinha um olhar fixo. Parecia hipnotizado por tudo ao seu redor.
Percebendo que a jovem não era do vilarejo, Dona Tiana perguntou:
-- A moça mora lá na capital?
A jovem limitou-se a fazer apenas um sinal positivo com a cabeça.
-- É bonito lá, né? Um dia ainda vou morar lá com meu Nenê... ver aqueles prédio, aquelas coisa bonita.
Ela ajeita o Nenê no colo e se dirige à jovem de novo.
-- A moça é bonita. Tem parente aqui na vila?
Mais uma vez o sinal afirmativo com a cabeça.
-- Veio passear?
-- Vim visitar uma tia – disse a jovem, rompendo o silêncio.
-- Quando o marido voltar, vamo morar lá na capital. Ele foi pro Rio de Janeiro, tentar a vida lá, mas ele volta qualquer dia desse. Ele volta. Volta pra conhecer o Nenê e dá uma vida melhor pra nós na cidade grande. A vida aqui é um pouco sofrida.
Nota-se em sua voz que sofre uma certa perturbação, mas não deixa isso abatê-la. Muda logo de assunto.
-- Tá bonita a noite, né? Tá fazeno uma lua bonita.
-- Tá bonita, mesmo. Viva a noite de natal! Viva o Papai Noel! Viva! – diz o bêbado, num excesso de euforia.
-- A moça tem filho?
-- Não.
-- Eu tive dois. Esse e um outro. Tão bonito. Nunca vi uma criança tão bonita como ele. Sabe aquelas criança que de tão bonita, tão bonita, parece até que num é desse mundo?! Assim era o meu menino, tão bonito que chega dava orgulho.
Enquanto fala do filho, seus olhos brilham.
-- E tão calmo, tão carinhoso, cuidadoso que só ele, nem parecia criança. Uma vez ele disse que tava com vontade comer pamonha de goiabada, numa época que não tinha milho em lugar nenhum. Muito menos goiabada, que é caro. Mas ele queria. Nesse dia de tardinha, que eu olhei pro portão de casa, ele tava sentadinho no chão mastigano alguma coisa. Que eu cheguei perto pra ver o que era, adivinha? Era uma pamoinha de goiabada bem quentinha.
Todos já estavam envolvidos com a história e com a forma que Dona Tiana contava. Pouco a pouco, inconscientemente, a história de Dona Tiana estava chamando a atenção daquela jovem.
-- Ele disse que uma moça tava passano e deu a pamonha pra ele. Eu corri na rua e só vi uma mulher de longe, de cabelo bem grande e com uma sacolinha na mão. Não deu tempo nem de ver quem era.
-- Fica quieto, Papai Noel, deixa ela contar – dizia o bêbado ao amigo invisível.
O rapaz, na ponta do barco, havia até abaixado para ouvir. Compenetrado nos olhos daquela mulher.
-- Outro dia, tinha um enteado meu lá em casa, criança também, eles tava brincano no quintal. E em sítio, cêis sabe: tem galinha, tem porco, boi, tudo que é tipo de bicho. Meu enteado pegou uma pedrinha na mão e tacou com tudo na cabecinha dum patinho. O bichinho esperneou, estrebuchou e logo ficou durinho no chão. Meu menino ficou só olhano. Eu nem briguei. Criança! Nem sabia o que tava fazeno. Meu menino foi até o patinho, colocou ele entre as mão, no quentinho, e quando ele abriu... o bichinho começou a se mexer. No fim do dia já tava bãozinho. Ninguém falou um isto que fosse. Tudo as coisa que ele falava ou queria, sempre acontecia. Um dia ele disse que ia voar. Eu nem liguei. Todas criança tem dessas coisa que vai voar. Ele disse que ia voar pro céu, o danado.
Dona Tiana não se contém de emoção, respira fundo e silencia. Só se ouve o barulho das águas.
-- E então?...
Dona Tiana ajeita o Nenê no colo e prossegue.
-- Na noite de natal daquele ano, eu tava assano um pedaço de porco pra gente cear, quando percebi que tava tudo quieto por demais. Procurei na casa inteira e não achei o menino. Corri pra fora com a lamparina, que nem uma doida e quando eu olhei pra cima, ele tava em cima do telhado com os bracinho aberto. E antes memo que eu pudesse gritar... ele voou... meu menino voou... voou e nunca mais voltou. Se num tivesse voado, hoje ele seria um moço feito.
A jovem seca discretamente uma lágrima, o rapaz apenas ouve e o barqueiro continua remando, não acredita nessas histórias. Para ele só existia uma verdade; ela tinha matado o filho, o resto era tudo invenção.
-- Tudo isso aconteceu numa noite de natal, como essa, moça.
O bêbado lutava contra o sono para continuar ouvindo Dona Tiana. Porém, continuava a falar com seu amigo invisível – o Papai Noel – como ele mesmo dizia.
-- Presente? Que Presente? Ah! Tá, eu falo. Olha, ele tá dizeno que vai dar um presente pra senhora nesse natal – dirigindo-se a Dona Tiana.
Estava cada vez mais louco, pensaram.
-- Ele tá dizeno que a senhora vai gostar muito – foi só dizer isso e ser vencido pelo sono.
A jovem, assim como o rapaz, estava muito comovida com a história e se sentiu muito pequena e mesquinha diante daquela mulher.
-- Nossa! Que história! Como a senhora suportou tudo isso? Eu não teria agüentado.
Antes de responder, Dona Tiana pede à jovem que segure o Nenê para que possa pegar a mamadeira dele e a prepara, enquanto diz toda orgulhosa:
-- Ele não era pra esse mundo, não. Era uma criança especial. Não ia conseguir viver aqui, moça. Demorou, mas hoje eu entendo que ele precisava voar.
E olhando bem dentro dos olhos daquela jovem, perceptivelmente fragilizada:
-- Tem gente que precisa voar, moça. E ele voou.
Ao ouvir isso, a jovem descobre o rostinho do Nenê, para vê-lo, e percebe que ele está morto. Involuntariamente, solta um grito.
-- Que foi, moça? Tá passano bem?
O bêbado se mexe, mas o sono é mais forte que o grito. O barqueiro até pára de remar por alguns segundos. O rapaz continua calmo.
-- O seu bebê é muito bonito, mas ele está morto.
O barqueiro volta a remar. Mais um morto nas mãos daquela louca, pensava ele.
Dona Tiana deixa cair a mamadeira no chão e pega bruscamente o Nenê do colo da jovem.
-- Deixa de brincadeira, moça. Isso é coisa que se diga? Ele não é bonito, não. Meu Nenê é feio e só tá com um pouco de febre. Bonito era o outro.
Notando a mamadeira caída, o rapaz a envolve entre as mãos.
-- Minha senhora, o seu bebê está morto.
-- Meu Nenê num tá morto, não, moça. O meu marido vai voltar, meu Nenê vai ficar bãozinho e vai ser tudo como era.
Elas discutem. A jovem tem certeza que o Nenê está morto. Ela sentiu seu pequeno corpo gelado, duro.
No meio daquela discussão, o rapaz volta para o ponta do barco e fica olhando para o pequeno bebê morto.
-- Eu sei que é difícil, mas o seu bebê foi pro céu, como o outro.
-- A moça tá doida. Meu Nenê não vai pro céu... não agora. Num vou deixar – pega a mamadeira. – mama, meu Nenê, mama.
E no ápice do seu desespero:
-- Mama, vamo mamar um pouquinho? Mostra pra moça que o Nenê tá bãozinho, mostra. Mama, por favor. Ele vai mamar, cêis vão ver.
A jovem, sem saber o que fazer, começa a chorar. Sua vontade é de abraçar aquela mãe.
-- Mama, por favor, mama. Mama, pelo amor do Pai, todo misericordioso, eu te imploro, meu Nenê, mama. Mama pra sarar, mama. Se o Nenê num mamá logo, o leite vai acabá azedano.
E o Nenê, a razão de viver de Dona Tiana, começa a mamar.
-- Mas ele estava...
-- Dormino, moça. Dormino como um anjinho.
O rapaz se levanta, sobe na ponta do barco, se equilibra nas pontas dos pés e... definitivamente, voa.
As velas se desfazem ao som de uma cantiga de ninar, sussurrada por Dona Tiana.

Autoria: Everson Bertucci

IRREAÇÃO

Hoje, fui vítima de uma eventualidade. Ou não? Puxaram minha sacola na rua. Pensei ser um amigo brincando.
-- Passa a bolsa, meu chapa, senão te pipoco todo. Não tô aqui pra brincadeira, não. Anda! Anda! Anda! Vamo logo, maluco, passa essa sacola pra cá, que é melhor pra ti.
Não era um amigo. Puxei a sacola para junto de meu corpo.
-- A gente não tá pra brincadeira, passa logo a sacola, pô!
Eram dois. Fizeram de suas palavras uma metralhadora de ameaças intimidantes. Não dei a sacola que eles queriam. Eu puxava de um lado e um deles, do outro.
-- Não vou dar. Isso não é meu.
Era meu sim. Mas eu não ia dar. Tinha comprado naquele dia. Uma jaqueta que eu paquerava há dois meses e que levaria três para pagar.
Com uma agilidade impressionante, o que tentava me tirar a sacola percebeu e retirou minha carteira do bolso sem que eu pudesse deter. Ah, mas ele foi bonzinho, retirou o pouco dinheiro que tinha e me devolveu a carteira.

-- Passa logo a sacola, senão a gente te mata.
-- Então mata, seu escroto. Só assim pra levar o que é meu. Filho da puta! Socorro! Socorro! Socorro! Eles estão me matando. Socorro!
Dei um chute certeiro no saco do que me abordou.
-- Ainda vai querer minha sacola seu verme?
Uma cotovelada entre o olho e o nariz do outro. Tenho certeza que ele nunca mais vai esquecer. As pessoas que passavam, percebendo tudo aquilo, desceram de seus carros, bicicletas e motocicletas e vieram me prestar socorro. Uma senhora que passava se revoltou e deu uma bolsada em cada um deles. Um jovem acabou de quebrar o nariz que eu havia começado. O pessoal que estava no ônibus desceu e começou a gritar e ao mesmo tempo chutar aqueles dois que já estavam envoltos em sangue. Tiramos a roupa deles e deixamos expostos na calçada como devem ficar as carnes putrefatas. Depois começamos a cuspir neles. Precisavam sentir a chuva ácida de nossas salivas sobre seus corpos. A polícia, os bombeiros e uma ambulância chegaram muito rapidamente. Contiveram (?) a multidão. Os enfermeiros arrastaram os dois até a ambulância, os jogaram sobre a maca e saíram. Os policiais ficaram e parabenizaram todos nós pelo ato de bravura e coragem. Os bombeiros vieram pessoalmente me cumprimentar e todos aplaudiram a ação. Aos poucos a ordem estava de volta e o sangue no chão ficou como registro.

No que eu colocava a carteira de volta no bolso, ele aproveitou a minha distração e arrancou- me a sacola. Se eu não estivesse com uma pasta na outra mão ele não teria conseguido. O outro ainda quis me tirar a jaqueta que eu estava vestindo.
-- Tiro porra nenhuma!
Saíram correndo. É tudo muito rápido e os pensamentos muito lentos, embora os flashes que roda na cabeça tenha uma velocidade quase inexplicável nestas ocasiões. Talvez, justamente por isso: a lentidão e a cegueira. Não se registra muita coisa.
Seria incapaz de reconhecer aqueles dois rostos, mas registrei perfeitamente o rosto da mulher que estava parada na porta do bar, a expressão facial do rapaz que passou interrogativo e os olhares curiosos de dentro do ônibus parado no semáforo.
Com o sol - que, finalmente, resolveu aparecer naquela tarde bonita - o silêncio de uma avenida movimentada.

Autoria: Everson Bertucci

PEQUENAS PEDRAS

Com doze anos, numa discussão com o estranho, decidiu que aos dezoito sairia de casa. Necessitava lidar com o novo, com o desconhecido, queria tentar não ser como os de seu rededor. Só não sabia que... melhor começar de antes. Sete anos, foi aí a primeira surra, o primeiro xingamento. Diabo. Capeta. Menino correndo. Pai atrás com um cinto. Raiva. Dor. Choro.
Mas este ainda não é o começo. Na ausência do pai, era costumeiro a criança dormir com a mãe. Quando, na madrugada, este chegava, apenas um leve toque na cama fazia o pequenino acordar e correr assustado para o seu quarto, embora só tivesse três anos e muito medo da escuridão. Ah, ainda aos três, uma imagem: em meio às lágrimas da família, o menino corre sorridente em volta de um caixão de madeira ao brincar com pedrinhas com outros de sua idade.
Quando houve a decisão, foi para nunca mais vê-lo. Perguntava à mãe sobre a gravidez, a dieta, como nasceu. Respostas convincentes demais. Nenhuma pista. Filho dela com outro homem? Troca na maternidade? Adoção? Paranóia. Todos os detalhes eram confirmados pelos familiares, inclusive o detalhe de que mãe e filho perderam muito sangue e quase morreram na mesa de parto. Questionou os antigos namorados, tentou descobrir um possível amante. Nenhum vestígio.
Com um ano e meio tinha verdadeiro fascínio por passeio de carro. E lá ia a criança toda contente, desde que tivesse mais alguém junto. Sozinha com o pai, chorava como se faltasse um pedaço de si. Ninguém nunca entendeu. Nem a mãe. Não parava quieto no colo do pai. Chorava, simplesmente chorava. Nada que pudesse ser explicado.
Aos seis, choro compulsivo ao lembrar de uma imagem bonita: um velhinho bem magro que o segurava em seu colo, lhe contando histórias fantásticas e mostrando como as gaivotas se relacionam com o ar. Mas ele ainda não entendia. Apenas imagens.
Aos dez, embora sem entender direito o símbolo das alianças, o menino ficou encantado com a leveza da jóia e o branco do vestido de noiva da irmã. Encontraria no cunhado a figura que sempre quisera ter, mas a decepção veio logo. Percebera que o cunhado não era tão diferente assim daquele que era obrigado a chamar de pai. Entristecia-se sempre antes de dormir ao imaginar o tom sombrio das discussões e rezava ao velhinho magro para que nunca ela pudesse engravidar do marido. Desejou ser um pequeno felino, ao ver, certa tarde de sol, um filhote de gato deitado sobre a barriga de seu pai que passava a língua de leve sobre seu pêlo.
Com cinco anos e meio, nasce o irmão. Olhava a penúltima ninhada de coelhinhos e percebia como eles brincavam de mordidinhas uns nos outros, como uma gostosa demonstração de carinho fraternal. Mal podia imaginar que o irmão, dificultaria ainda mais sua relação com o pai. O irmão tinha uma forte ligação com o pai, o que o fez, mais tarde, perceber que sua teoria de que ninguém pudesse suportá-lo, fosse descartada. Perturbação. Questionamento. Dúvida. Como o pai se relacionara tão bem com o irmão e não com ele?
Vez ou outra, o pai dava ao filho alguns doces e chocolates... com recheios de silêncio, embalados com papeizinhos coloridos de distanciamento.
No seu oitavo aniversário, ao brincar com pedrinhas numa calçada isolada da escola, percebeu uma legião de formigas passando por baixo de suas pernas e se impressionou ao vê-las enfileiradas, cada qual carregando um pedaço de folha. Com uma das pedras, esmagou o máximo de formigas que pôde. Sentou e ficou olhando a pequena legião cadavérica. Algumas ainda agonizavam. Levantou, preparou uma espécie de ninho com alguns gravetos e folhas secas, pegou uma por uma e fez o sepultamento embaixo de uma escada. Por cima ele jogou algumas folhas de amora bem verdes e perfumadas. Foi a última vez que brincou com pedras.
Com catorze, o instinto de independência do menino ficava cada vez mais aguçado. Começou a trabalhar para ganhar pelo menos o que dava para comprar alguma coisa sem ter mendigar ao pai, embora antes já houvera feito. Foi aos nove a tentativa frustrante de vender picolé. No terceiro dia foi assaltado e o abalo veio como tempestade em dia de sol. Pensava que se tivesse um pai presente, poderia tê-lo contado o ocorrido e, talvez, resolvido o problema ou pelo menos tentado outras vezes.
De volta aos três, a imagem de um menino feliz correndo em volta de um caixão com pequenas pedras nas mãos e um sorriso alheio ao que acontecia: a grande perda.
Outro ponto condenado pelo garoto era a covardia paterna. Sempre que o pai tinha algo a falar com qualquer um deles, mandava recado pela mãe, que era uma espécie de porta-voz do marido. Se havia alguma coisa de errado que algum dos filhos havia feito: “o seu pai falou que...” frase esta que se repetiu por muitos anos através da boca da mãe. Quis e provocou várias situações para que a cena dos sete se repetisse.
Numa das brigas com o irmão, este aproveitou para fazer o que adorava: distanciá-los ainda mais. Foi o suficiente para o pai dar um tapa na cara daquele jovem, em plenos dezesseis anos. Visualizou o pai numa cova escura e úmida, enquanto saboreava uma taça de sorvete bem gelada. Apesar de ser quase impossível, evitava assistir às cenas de afeto entre o pai e o irmão. Pensou novamente em manusear algumas pedras, mas não conseguiu.
Viver sob o mesmo teto que o pai fizera cada dia daqueles dezoito anos, infindáveis. Mas felizmente chegou e a promessa feita aos doze, finalmente pudera ser cumprida. Precisava estudar, mudar o rumo de sua vida, traçar um outro destino, descobrir horizontes. Só não sabia que nada seria tão fácil como aquela promessa. Nunca mais falaria com o pai. Simples assim. Passado apagado, excluído. Vida nova sem pai, já que esta palavra era só uma nomenclatura imposta.
A primeira ligação recebida fora do pai. Monossílabas. O pai passou a fazer freqüentes ligações ao filho, saber se estava bem, se precisava de alguma coisa. Sempre estava tudo bem, não precisava de nada. Estranhamento. Humilhação? Preocupação. Conversas vagas, silenciosas. Mesmas perguntas, mesmas respostas. Como o pai podia estar preocupado? Não se pode preocupar com desconhecidos. Confusão. Medo.
Adulto, passara a perceber que o pai não aprendera a demonstrar afeição. Mas, e o irmão? Eles se amavam, viviam juntos onde quer que fossem, gostavam das mesmas coisas. Passou a observar com mais cuidado nas visitas que fazia a eles. Era o irmão quem procurava o pai e fez com que ele aprendesse a dar e a receber carinho, embora que somente a ele.
Pai, eu fiz uma coisa horrível. Eu sou uma pessoa horrível. Horrível, pai. Horrível. Eu deixei de te dar o que eu e você sempre procuramos um do outro e que nunca nos demos. Fui eu. Nunca joguei bola contigo. Nunca te abracei. Queria tanto ter aprendido a dirigir com você. Lembra? Nem isso eu deixei. Todos os passeios que você fez com o meu irmão, eu queria ter estado junto. As brincadeiras que vocês faziam... os abraços... os conselhos que eu nunca ouvi... Sempre acreditei que você não me amava, por isso não te amei. Eu não sei o que aconteceu na minha infância que me levou a te rejeitar, mas...
O que restou foram palavras ensaiadas e a imagem da única figura que ele admirou em vida e que na verdade não passara de uma incerteza: o velhinho magro no caixão de madeira, naquela tarde bonita que o fez brincar e, em outras vezes, lembrar daquela e de outras tantas imagens em que o velhinho sempre o acompanhava e o acompanhou por toda a vida.

Autoria: Everson Bertucci

MPb3

Maldição. Quando acordei, apenas uma pessoa no vagão, e duas estações adiante de onde eu deveria ter descido. Outra cidade. Rapidamente, dirigi-me aos guardas e perguntei:
-- hoje ainda passa trem?
Sorrindo, um deles me respondeu:
-- sim.
Por dentro, um alívio. Mas ele continuou sem perder o sorriso:
-- às 4h40 da madrugada.
Foi com aquele sorriso que ele me fez perceber que se passava da meia-noite e que eu fiz aquela pergunta usando o “hoje” achando que era ontem. Perguntei se tinha algum outro meio de condução para que eu pudesse voltar pra casa e outra vez ele me respondeu sorrindo:
-- táxi!
A vida se repete na estação. Eu sei, errei de novo. Devia ter perguntado se ainda tinha ônibus. Felizmente o outro guarda percebeu a situação e disse que não havia mais ônibus naquele horário e que a estação estava prestes a fechar. Nas entrelinhas: eu não poderia passar a noite ali.
Ainda meio anestesiado, me perguntava como eu podia ter dormido daquela forma sabendo do risco de passar por apuros. Dei uma volta pela redondeza. Olhei a fileira de táxis. Pensei na distância. Olhei para a carteira. Descartei a hipótese. Pensei nos antigos relacionamentos, em amigos. Não tive coragem de incomodá-los. Ando tão à flor da pele.
A noite estava ficando cada vez mais fria. As portas de um bar estavam entreabertas e o homem que lavava o chão me informou que ainda havia um ônibus que passava por volta da uma hora da madrugada e me indicou o caminho de forma cortês. Só então entendi o sorriso do guarda.
No ponto, um senhor fuma e um engraxate dorme com a cabeça enfiada entre os joelhos. Dentro dos carros que passam, pessoas nos observam... e seguem. Vários. Ao longe, dois rapazes riem e gesticulam. Entre as conversas com aquele senhor, eu me imaginava deitado num canto qualquer, caso o ônibus não passasse.
Nunca pensei que fosse ficar tão feliz vendo um ônibus vindo em minha direção. Acordei o engraxate e subi com o aquele senhor pela porta da frente. O engraxate pediu carona ao motorista e a porta traseira do veículo se abriu. O problema mais grave estava resolvido. Desci no centro da minha cidade e agora era só caminhar por cinqüenta longos minutos e estaria em casa. Eu finjo ter paciência.
Foi tudo uma questão de sintonia. Nessas horas que se entende melhor a força da revolução tecnológica. No caminho que todos caminham, ninguém andava. Apenas um mendigo dormia numa das esquinas. Meus braços começam a se mexer e logo em seguida meu corpo é tomado pelo embalo do silêncio. Eu lembro da moça bonita da praia de Boa Viagem.
Ao olhar para um espelho, não sei se côncavo, convexo ou reconvexo, vi na minha imagem refletida uma mistura exótica e exuberante de Maria Bethânia e Renato Russo. Uma constelação estelar serviu de suporte para que eles, dentro de mim, passassem de mãos dadas rumo ao relicário. Dentro dele, uma garotinha cheia de malandragem e só de calcinha saiu, descalça, cantando. Ela corria gargalhante arrastando um violão. Veio até mim e disse bem baixinho:
-- entregue este violão à moça bonita que fica atrás daquele Monte. Ela sabe como usá-lo.
E deu um toque numa das cordas do instrumento. Nem precisei chamá-la. Ao ouvir, a moça saiu detrás do Monte e a plenitude tomou conta da rua. Gotículas coloridas caíam. Entre elas, outra moça desgrenhada saiu da Mata, acompanhada de um rapaz chamado Zé. Havia uma beleza ali. Todas aquelas vozes se juntaram e ao som de bandolins continuamos caminhando.
Os poucos que passaram pela rua, dentro de seus carros bonitos, me olhavam com olhos de interrogação aos meus movimentos empolgados e minha boca que só emitia silêncio e alegria.
Encontramos um homem de vestimentas escuras, barba por fazer e jeito maluco, que disse ser necessário que eu perdesse aquele trem das 11. Até ele já sabia, embora o horário do trem não fosse bem esse. Muitas coisas inusitadas pelo caminho. A mulher com jeito de menina - meio japonesa, inteira brasileira - cantava sobre o tempo; a Evangelista que não era a cura para a loucura de ninguém; Tim Maia tomando uma xícara de chocolate quente enquanto observava A Menina da Lua fazendo um pedido à mãe:
-- mande notícias do mundo de lá...
E no segundo em que tudo parou, Ney aceitava a rosa oferecida pelo Beija-Flor e ela logo se transformou num grande campo de girassóis de amarelo intenso e eu ia e eu ia e eu ia...
Passado das duas da manhã, cheguei em casa e antes que eu pudesse convidá-los para entrar, uma Borboletinha invocada disse que eles andam pelo mundo prestando atenção em cores, divertindo gente.
Uma maquininha tão pequenininha!

Autoria: Everson Bertucci

UM GRITO DE SILÊNCIO

Hoje, me sinto estuprado no modo que há de pior: na minha inteligência. Que inteligência!? Se fosse inteligente, não teria deixado chegar onde chegou. Teria feito outro caminho – havia tantas possibilidades! Se fosse inteligente, faria desnecessárias estas linhas. Estupraram a minha dignidade e a deixaram estraçalhada, jogada no mais ínfimo buraco. Fizeram do meu ouvido um poço de descarga verborrágica hipócrita... e eu, na minha capacidade de acreditar em anedotas, deixei me levar. E por acreditar na mudança... fui deixando cada vez mais.
“Ah, idiota!” - uma voz me dizia ao fundo. Mas eu não quis dar ouvidos. E esse jogo verbal me seduziu e explorou tudo o que havia de melhor em mim – tudo bem que não havia grande coisa – canalizando todas as minhas energias para o que eles queriam.
Estupraram a minha capacidade de pensar, (parece mentira, eu sei) pois era tanta informação que recebia - que meu pensamento - na sua incapacidade de administrar, puxou o piloto automático. Estupraram a minha capacidade de me relacionar. Na ânsia de produzir pra eles, me afastei dos meus e impedi que outros chegassem. O Muro de Berlim se reduziria a nada perto daquele que eu construí.
Estupraram a minha capacidade de falar. Minha fome era tanta, que me contentei com migalhas – dessas que jogam aos pombos famintos. Estupraram minha capacidade visual. Me fizeram ver o que eles queriam que eu visse. Eu até relutei no começo... mas eles foram mais rápidos: pintaram paisagens.
Quando digo que me estupraram no pior sentido que existe é porque se fosse um estupro convencional, eu teria esperança de recuperação. Eu teria no que me apegar para continuar. Felizmente, não conseguiram estuprar minha capacidade de indignação. Essa eles não conseguiram. “Mas de quê adianta?”. Ela sozinha não é nada. Sozinha, é um ponto perdido nesse faminto universo... é o que restou de mim: o silêncio.

Autoria: Everson Bertucci

A FABULOSA SAGA DE TIQUINHO E MARIINHA

Era uma vez, no alto de um morro, uma escola grande, com várias salas de aula, várias faixas etárias de alunos, muitas professoras e duas crianças bem incomuns. Mariinha e Tiquinho. Por uma coincidência - dessas que às vezes são felizes, outras, nem tanto - eles foram parar na mesma sala.
Além de observadores, eles gostavam muito de aprender coisas novas. Questionavam o que lhes era passado e muitas vezes percebia as incoerências da escola. Mariinha e Tiquinho eram muito amigos, faziam as atividades junto e gostavam de comentar quando alguma informação equivocada chegava aos seus ouvidos atentos. No geral, eles se davam muito bem com as outras crianças, embora se sentissem bem diferentes delas. No decorrer do ano eles perceberam que sua professora, Suzana Lilí, estava repetindo atividades e pelo andar das coisas, tampouco preparando as aulas.
É claro que as outras crianças da sala não perceberam nada, mas Mariinha alertou Tiquinho e eles começaram a ficar bem mais atentos do que já eram. Durante o período letivo as duas crianças perceberam que a professora Suzana Lilí cometia muitos deslizes. No princípio eles acharam normal, mas depois viram que com Suzana Lilí era uma coisa muito freqüente. Ela trocava n por m, x por s, c por s e frases absurdamente mal construídas. Quando se tratava de matemática então: era um desastre. Houve ocasiões que até com calculadora ela errava.
Mariinha e Tiquinho não sabiam o que fazer. Tiveram receio em falar para a direção da escola e não serem compreendidos, afinal, além de serem crianças, havia a questão deles passarem por cima – por pior que fosse – da autoridade máxima da sala.
Suzana Lilí vivia se gabando que era professora concursada há quase vinte anos. Para ela isso era motivo de orgulho. Vivia falando isto em sala de aula, enquanto os dois cochichavam entre si:
-- Também, naquela época deviam existir mais vagas do que candidatos ao cargo.
Ela também falava das viagens que fazia nas férias, das histórias que para ela eram muito engraçadas e que para os alunos não passava de uma chatice. Eles se retorciam por dentro quando ela começava a contar suas aventuras de super-professora. Era como se os alunos tivessem ganhado um caminhão de doces e brinquedos e Suzana Lilí viesse e arrancasse tudo deles num golpe só. Quando ela começava a narrar o episódio de seu casamento - e isso ela fazia toda semana – Mariinha comentava com seu coleguinha:
-- Por quê ela não descarrega logo um revolver na minha testa e acaba logo com isso?
Era sempre aquela mesma história do marido que teve alergia e ficou todo empipocado na lua-de-mel; do mico que eles pagaram no hotel onde se hospedaram; dos problemas que tiveram no avião; e das visões que Suzana Lilí dizia ter. Dizia que dois anos antes de engravidar ela já sabia que seria uma menina e o nome da criança tinha sido revelado num sonho.
-- Bem que ela podia usar esses poderes para ver que é uma chata e que está me torturando! - outro comentário de Mariinha.
Chegou a um ponto que Mariinha e Tiquinho resolveram tomar uma atitude. Se convenceram que o melhor a fazer era pedir que os transferisse daquela sala. Conversaram com seus pais e contaram tudo a eles. Estes acharam um absurdo, eles não sabiam que os dois eram bem diferentes das outras crianças. Se convenceram que seus filhos tinham uma imaginação fértil e que haviam inventado todas aquelas histórias dos erros gramaticais, matemáticos e das histórias torturantes que Suzana Lilí vivia contando.
Resolveram conversar com a diretora da escola. Alegaram que gostariam de fazer novas amizades com outras crianças e que queriam novas experiências. Ela os levou até a janela e disse:
-- Estão vendo aquela mula pastando ali?
Os dois balançaram suas cabeças dizendo sim.
-- É a Mula Mumu. Ela pasta aqui todos os dias. E sabem por quê eu nunca a impedi de fazer isto?
Eles fazem o mesmo gesto, só que negativamente.
-- Porque é preciso. Para que ervas daninhas e o capim não tomem conta desta escola. Assim como é preciso que vocês dois voltem para a sala e façam o que tem de ser feito lá.
-- Mas a gente só...
-- Agora!
Saíram cabisbaixos. Ninguém acreditava neles, afinal, Suzana Lilí se fazia passar por simpática com a diretora e com os pais de seus alunos que ninguém podia imaginar que fosse capaz de cometer aquilo que Mariinha e Tiquinho tinham relatado.
Vencidos, os dois amigos resolveram não dar ouvidos às atrocidades ditas por Suzana Lilí. À cada dia ela se superava. A situação foi ficando tão difícil que num determinado momento Tiquinho abriu um potinho de tinta guache e já ia engolindo, para dar fim àquilo tudo. Felizmente foi impedido a tempo por Mariinha que estava atenta.
-- E a se a gente pegasse um litro de álcool e atiasse fogo nela? sugeriu Tiquinho.
-- Ficou louco? Não vê que as outras crianças ficariam traumatizadas?!
Mariinha sugeriu que eles reunissem provas concretas das falhas de Suzana Lilí. Começaram a guardar uma cópia de cada atividade mal elaborada, dos erros de ortografia e por fim bisbilhotar nos planos de aula dela. Como Suzana Lilí costumava sair muito da sala para bater papo com outras professoras na porta de suas salas, as duas crianças aproveitavam para mexer nas coisas dela para ver se achavam algo mais comprometedor. Até que encontraram o projeto de aula dela.
-- Aqui deve conter o suficiente!
Sem que o restante da sala percebesse - pois estavam muito entretidos com as atividades que Suzana Lilí havia lhes dado antes de se ausentar – os dois pegaram aquela cópia do projeto e esconderam embaixo da mesa de Mariinha para que num momento mais reservado pudessem analisar.
Na hora do intervalo daquele mesmo dia, enquanto seus colegas se divertiam no parquinho - e Suzana Lilí contava pela enésima vez aquela velha história de sua lua-de-mel para as outras professoras, que ouviam tudo com cara de paisagem - Mariinha e Tiquinho começaram a leitura do tal projeto. Mariinha se prontificou em ler em voz alta para que os dois pudessem ouvir ao mesmo tempo. Em poucos minutos estavam extasiados. Tiveram uma crise de riso histérica. Pareciam duas crianças ensandecidas. Deitaram no piso e esperneavam de tanto rir. Batiam as mãozinhas no chão e tiveram até dor no abdome de tanto gargalhar. À cada página lida, eles se retorciam. Até que Tiquinho fez um pedido à Mariinha:
-- Pára, pelo amor de Deus, que eu estou morrendo! – rolando de tanto gargalhar!
E eles deram uma trégua. Como o projeto tinha muitas páginas eles iam lendo pouco a pouco e a cada dia era uma maratona de risos. Eles sabiam que nunca nenhum livro de piada, comédia ou qualquer outro gênero literário iria fazê-los se divertir tanto.
Além dos erros que eles já estavam acostumados a ver nas escritas de Suzana Lilí, encontraram no projeto vários gráficos que nem os surrealistas seriam capazes de criar. Alguns deles contabilizavam cerca de 170, 230 e até 300%. Mariinha por um momento sentiu que ia desmaiar. Felizmente recuperou o fôlego e prosseguiu. Perceberam também que em todas as páginas, além da pontuação comum – muitas vezes equivocada – havia uma quantidade muito grande de ponto e vírgula. Ao final de quase todas as frases havia um ponto e vírgula. Aquilo os deixou intrigados. Foram até a biblioteca – que para os dois amigos era uma rotina – e pesquisaram sobre o uso do ponto e vírgula, pois até então eles não sabiam como os livros gramaticais indicavam como usar tal recurso e chegaram à mais uma conclusão:
-- Ela deve achar ponto e vírgula uma coisa muito bonitinha!
No dia seguinte ao entrar em sala de aula, a professora Suzana Lilí se deparou com a lousa repleta de pontos e vírgulas. Enquanto Mariinha e Tiquinho se olhavam de rabo de olho e minúsculos sorrisinhos, Suzana Lilí, sem entender nada, começou sua aula normalmente.
Foi então que eles se dirigiram à Suzana Lilí.
-- Professora, precisamos conversar com a senhora – disse Tiquinho.
-- Oi, meus queridinhos! Mas o que duas criancinhas tão lindinhas podem querer falar com a sua professora?
-- Mais um diminutivo destes e eu jogo esse pirulito dentro do olho dela – cochichou Mariinha à Tiquinho.
Tiquinho disse que eles queriam ser transferidos de turma, pois gostariam de conhecer novas crianças, ter novas experiências. Apesar de tudo não queriam magoar Suzana Lilí. Mas esta nem deu ouvidos ao pedido deles.
-- Imaginem, meus anjinhos, o que iria pensar a diretora e até os outros professores se vissem saindo da minha sala dois alunos de uma só vez? Não pegaria bem pra mim. Iriam pensar que não sou uma boa profissional. Eu sei que vocês são espertinhos e gostam de novidades, mas terão de permanecer comigo até o fim do ano, são as regras. Prometo fazer muitas brincadeirinhas divertidas e contar bastante historinhas pra vocês
-- Será que a retardada sou eu? – pensava Mariinha.
-- Mas professora...
-- Agora voltem para os seus lugares que eu vou dar um desenho bem lindinho para vocês pintarem.
-- Eu morri, vim parar no inferno e ninguém me disse nada, não é Tiquinho?
Derrotados, eles se dirigiram para os seus assentos.
-- Fazemos o quê agora, Mariinha?
-- Eu quero vomitar!
-- Desistimos?
E se deu um silêncio. Não viram outra opção a não ser aceitar aquela situação até o fim do ano letivo, já que ninguém dera ouvidos aos seus apelos.
-- Daqui a pouco o ano acaba e tudo vai se resolver – concluiu Tiquinho.
Mas não puderam se conter quando Suzana Lilí continuava com suas histórias da lua-de-mel, seguidas de uma atividade equivocada.
-- Tem de haver um limite para tudo nesse mundo! Vamos dar um jeito nisto e é agora.
-- O que você vai fazer, Mariinha?
Ela pegou nas mãos de seu colega e se dirigiu à Suzana Lilí.
-- Oi, meus amores, o que querem desta vez? Ai, que lindinho esse lacinho no seu cabelo, Mariinha!
-- Mas um diminutivo e eu faço você engolir este laço!
-- Quem você pensa que é para falar deste modo comigo, mocinha?
-- Mariinha! E o diminutivo neste caso é um mero acaso.
-- Hein?
Mariinha disse a ela que eles não estavam mais suportando assistir às aulas. Que era difícil tolerar tantos erros cometidos por uma professora, principalmente em se tratando de uma aprendizagem infantil, que é de extrema importância.
-- Olha aqui, garotinha, todo mundo erra!
-- Claro, concordo plenamente que errar é normal. Mas no seu caso, raros são os acertos.
-- Não me interessa o que vocês pensam sobre mim.
-- Pois devia.
-- Vocês são minoria.
Para tentar amenizar, Tiquinho interrompe:
-- A gente só quer sair desta turma, professora.
-- Pois saibam que quem manda aqui sou eu. Eu sou a autoridade máxima e vocês não passam de duas crianças que mal saíram das fraldas. Não sabem de nada.
-- A gente só está querendo...
-- Nada. Vocês não têm que querer nada. Voltem para as suas mesas e não abram mais estas boquinhas, senão vão parar na direção.
Intimidados, eles voltaram arrasados. Uma semana depois, Mariinha teve um estalo.
-- Nós também estamos errados!
Mariinha se deu conta de que o restante da sala é que estava precisando de ajuda, pois os dois eram espertos o suficiente para se safar de Suzana Lilí, enquanto os outros alunos não tinham consciência que algo de muito errado estava acontecendo e que poderia afetá-los para o resto de suas vidas.
Foi então que os dois colegas reuniram todo o material que eles tinham e que comprovavam o que estavam falando e juntamente, um relatório escrito por eles mesmos - com maior interferência de Mariinha - e encaminharam para as autoridades municipais.
Após feita a análise de tudo o que foi relatado pelos alunos de Suzana Lilí, a mesma foi chamada pela autoridade competente que a deixou ciente do que estava acontecendo. Ela leu tudo o que estava escrito e não conteve as lágrimas, embora não tivesse percebido metade das acusações que pesavam sobre ela.
Não tendo outra solução para o caso, a mesma autoridade foi bem categórica:
-- Senhora Suzana Lilí, a partir de amanhã a senhora passa a prestar serviços no Estábulo Municipal.
Enquanto isso, a Mula Mumu continuava a fazer o que era preciso naquela escola fria, localizada no alto morro.

Autoria: Everson Bertucci

CRONIQUINHA SECA

Tem chovido muito na cidade de São Paulo nos últimos dias. Casas alagadas, árvores arrancadas, boeiros entupidos, pessoas desabrigadas. São Pedro, acho que poderia cessar um pouco a chuva por aqui. Que tal mudar o foco para o nordeste, pelo menos nos próximos dois dias? Sabe como é... fiz chapinha!

Autoria: Everson Bertucci

BICHA CARÃO 2

Sem dúvida alguma São Paulo é a capital brasileira não só da “bicha carão”, como também de sua antagonista: a “bicha carão 2”. A segunda se diz contrária à primeira, ou seja, discreta, sociável, bem relacionada e nada afetada, pelo menos não como as primeiras, que desmunhecam, têm um dialeto próprio e vivem sapecando um “e aí?...” a cada meia frase..
A bicha carão 2 é aquela que usa sandália havaiana, colar de sementes exóticas confeccionado por algum conhecido “hippie”, cueca branca, calça “jeans” batida, camiseta lisa. É aquela que lê Baudelaire, ouve Caetano, assiste Almodóvar, aprecia Portinari e chupa picolé. É aquela que não troca um show alternativo por um “bate cabelo” na pista. É aquela que chora para lavar a alma, jamais por tristeza, é “cult” por excelência e “naturalmente” os que a cercam sabem disso. É também aquela que não freqüenta boates, por não gostar do frenetismo rítmico e das abordagens fúteis.
Ela se diz desapegada de tudo e de todos, tem amor próprio e é auto-suficiente. A “carão 2” tem sempre um amigo (a) filósofo, sociólogo, bailarino, cineasta, poeta, produtor, diretor... escritor, então (aos montes). Adora a cultura negra, nordestina, regionalista...
A “bicha carão 2” é como a Vênus de Miilo, de Dali, só que a cada gaveta aberta nota-se a estadia dela na Inglaterra, bancada pela USP; o colar de sementes indígenas quando passou o melhor carnaval de sua vida em Salvador; o perfume francês dado pelo namorado alemão; a música clássica que a acompanhou os anos de tormenta enquanto doutoranda bolsista em Harvard; o doce afrodisíaco degustado quando foi, em excursão, conhecer os lençóis maranhenses, a sandália tribal presenteada por uma amiga africana; a “falta de tempo” para assistir filmes do circuito comercial e no fundo das gavetas, os planos de viagens culturais que ainda fará pelo mundo.
Mas na hora do duelo, a 1 saca logo a navalha enferrujada, enquanto a 2 se defende com um Guimarães Rosa do sebo. Resultado? Quem sabe uma nova especialidade na área da psicanálise.

Autoria: Everson Bertucci

obs.: pra quem quiser saber como é a bicha carão 1, pesquisar no google