terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A FABULOSA SAGA DE TIQUINHO E MARIINHA

Era uma vez, no alto de um morro, uma escola grande, com várias salas de aula, várias faixas etárias de alunos, muitas professoras e duas crianças bem incomuns. Mariinha e Tiquinho. Por uma coincidência - dessas que às vezes são felizes, outras, nem tanto - eles foram parar na mesma sala.
Além de observadores, eles gostavam muito de aprender coisas novas. Questionavam o que lhes era passado e muitas vezes percebia as incoerências da escola. Mariinha e Tiquinho eram muito amigos, faziam as atividades junto e gostavam de comentar quando alguma informação equivocada chegava aos seus ouvidos atentos. No geral, eles se davam muito bem com as outras crianças, embora se sentissem bem diferentes delas. No decorrer do ano eles perceberam que sua professora, Suzana Lilí, estava repetindo atividades e pelo andar das coisas, tampouco preparando as aulas.
É claro que as outras crianças da sala não perceberam nada, mas Mariinha alertou Tiquinho e eles começaram a ficar bem mais atentos do que já eram. Durante o período letivo as duas crianças perceberam que a professora Suzana Lilí cometia muitos deslizes. No princípio eles acharam normal, mas depois viram que com Suzana Lilí era uma coisa muito freqüente. Ela trocava n por m, x por s, c por s e frases absurdamente mal construídas. Quando se tratava de matemática então: era um desastre. Houve ocasiões que até com calculadora ela errava.
Mariinha e Tiquinho não sabiam o que fazer. Tiveram receio em falar para a direção da escola e não serem compreendidos, afinal, além de serem crianças, havia a questão deles passarem por cima – por pior que fosse – da autoridade máxima da sala.
Suzana Lilí vivia se gabando que era professora concursada há quase vinte anos. Para ela isso era motivo de orgulho. Vivia falando isto em sala de aula, enquanto os dois cochichavam entre si:
-- Também, naquela época deviam existir mais vagas do que candidatos ao cargo.
Ela também falava das viagens que fazia nas férias, das histórias que para ela eram muito engraçadas e que para os alunos não passava de uma chatice. Eles se retorciam por dentro quando ela começava a contar suas aventuras de super-professora. Era como se os alunos tivessem ganhado um caminhão de doces e brinquedos e Suzana Lilí viesse e arrancasse tudo deles num golpe só. Quando ela começava a narrar o episódio de seu casamento - e isso ela fazia toda semana – Mariinha comentava com seu coleguinha:
-- Por quê ela não descarrega logo um revolver na minha testa e acaba logo com isso?
Era sempre aquela mesma história do marido que teve alergia e ficou todo empipocado na lua-de-mel; do mico que eles pagaram no hotel onde se hospedaram; dos problemas que tiveram no avião; e das visões que Suzana Lilí dizia ter. Dizia que dois anos antes de engravidar ela já sabia que seria uma menina e o nome da criança tinha sido revelado num sonho.
-- Bem que ela podia usar esses poderes para ver que é uma chata e que está me torturando! - outro comentário de Mariinha.
Chegou a um ponto que Mariinha e Tiquinho resolveram tomar uma atitude. Se convenceram que o melhor a fazer era pedir que os transferisse daquela sala. Conversaram com seus pais e contaram tudo a eles. Estes acharam um absurdo, eles não sabiam que os dois eram bem diferentes das outras crianças. Se convenceram que seus filhos tinham uma imaginação fértil e que haviam inventado todas aquelas histórias dos erros gramaticais, matemáticos e das histórias torturantes que Suzana Lilí vivia contando.
Resolveram conversar com a diretora da escola. Alegaram que gostariam de fazer novas amizades com outras crianças e que queriam novas experiências. Ela os levou até a janela e disse:
-- Estão vendo aquela mula pastando ali?
Os dois balançaram suas cabeças dizendo sim.
-- É a Mula Mumu. Ela pasta aqui todos os dias. E sabem por quê eu nunca a impedi de fazer isto?
Eles fazem o mesmo gesto, só que negativamente.
-- Porque é preciso. Para que ervas daninhas e o capim não tomem conta desta escola. Assim como é preciso que vocês dois voltem para a sala e façam o que tem de ser feito lá.
-- Mas a gente só...
-- Agora!
Saíram cabisbaixos. Ninguém acreditava neles, afinal, Suzana Lilí se fazia passar por simpática com a diretora e com os pais de seus alunos que ninguém podia imaginar que fosse capaz de cometer aquilo que Mariinha e Tiquinho tinham relatado.
Vencidos, os dois amigos resolveram não dar ouvidos às atrocidades ditas por Suzana Lilí. À cada dia ela se superava. A situação foi ficando tão difícil que num determinado momento Tiquinho abriu um potinho de tinta guache e já ia engolindo, para dar fim àquilo tudo. Felizmente foi impedido a tempo por Mariinha que estava atenta.
-- E a se a gente pegasse um litro de álcool e atiasse fogo nela? sugeriu Tiquinho.
-- Ficou louco? Não vê que as outras crianças ficariam traumatizadas?!
Mariinha sugeriu que eles reunissem provas concretas das falhas de Suzana Lilí. Começaram a guardar uma cópia de cada atividade mal elaborada, dos erros de ortografia e por fim bisbilhotar nos planos de aula dela. Como Suzana Lilí costumava sair muito da sala para bater papo com outras professoras na porta de suas salas, as duas crianças aproveitavam para mexer nas coisas dela para ver se achavam algo mais comprometedor. Até que encontraram o projeto de aula dela.
-- Aqui deve conter o suficiente!
Sem que o restante da sala percebesse - pois estavam muito entretidos com as atividades que Suzana Lilí havia lhes dado antes de se ausentar – os dois pegaram aquela cópia do projeto e esconderam embaixo da mesa de Mariinha para que num momento mais reservado pudessem analisar.
Na hora do intervalo daquele mesmo dia, enquanto seus colegas se divertiam no parquinho - e Suzana Lilí contava pela enésima vez aquela velha história de sua lua-de-mel para as outras professoras, que ouviam tudo com cara de paisagem - Mariinha e Tiquinho começaram a leitura do tal projeto. Mariinha se prontificou em ler em voz alta para que os dois pudessem ouvir ao mesmo tempo. Em poucos minutos estavam extasiados. Tiveram uma crise de riso histérica. Pareciam duas crianças ensandecidas. Deitaram no piso e esperneavam de tanto rir. Batiam as mãozinhas no chão e tiveram até dor no abdome de tanto gargalhar. À cada página lida, eles se retorciam. Até que Tiquinho fez um pedido à Mariinha:
-- Pára, pelo amor de Deus, que eu estou morrendo! – rolando de tanto gargalhar!
E eles deram uma trégua. Como o projeto tinha muitas páginas eles iam lendo pouco a pouco e a cada dia era uma maratona de risos. Eles sabiam que nunca nenhum livro de piada, comédia ou qualquer outro gênero literário iria fazê-los se divertir tanto.
Além dos erros que eles já estavam acostumados a ver nas escritas de Suzana Lilí, encontraram no projeto vários gráficos que nem os surrealistas seriam capazes de criar. Alguns deles contabilizavam cerca de 170, 230 e até 300%. Mariinha por um momento sentiu que ia desmaiar. Felizmente recuperou o fôlego e prosseguiu. Perceberam também que em todas as páginas, além da pontuação comum – muitas vezes equivocada – havia uma quantidade muito grande de ponto e vírgula. Ao final de quase todas as frases havia um ponto e vírgula. Aquilo os deixou intrigados. Foram até a biblioteca – que para os dois amigos era uma rotina – e pesquisaram sobre o uso do ponto e vírgula, pois até então eles não sabiam como os livros gramaticais indicavam como usar tal recurso e chegaram à mais uma conclusão:
-- Ela deve achar ponto e vírgula uma coisa muito bonitinha!
No dia seguinte ao entrar em sala de aula, a professora Suzana Lilí se deparou com a lousa repleta de pontos e vírgulas. Enquanto Mariinha e Tiquinho se olhavam de rabo de olho e minúsculos sorrisinhos, Suzana Lilí, sem entender nada, começou sua aula normalmente.
Foi então que eles se dirigiram à Suzana Lilí.
-- Professora, precisamos conversar com a senhora – disse Tiquinho.
-- Oi, meus queridinhos! Mas o que duas criancinhas tão lindinhas podem querer falar com a sua professora?
-- Mais um diminutivo destes e eu jogo esse pirulito dentro do olho dela – cochichou Mariinha à Tiquinho.
Tiquinho disse que eles queriam ser transferidos de turma, pois gostariam de conhecer novas crianças, ter novas experiências. Apesar de tudo não queriam magoar Suzana Lilí. Mas esta nem deu ouvidos ao pedido deles.
-- Imaginem, meus anjinhos, o que iria pensar a diretora e até os outros professores se vissem saindo da minha sala dois alunos de uma só vez? Não pegaria bem pra mim. Iriam pensar que não sou uma boa profissional. Eu sei que vocês são espertinhos e gostam de novidades, mas terão de permanecer comigo até o fim do ano, são as regras. Prometo fazer muitas brincadeirinhas divertidas e contar bastante historinhas pra vocês
-- Será que a retardada sou eu? – pensava Mariinha.
-- Mas professora...
-- Agora voltem para os seus lugares que eu vou dar um desenho bem lindinho para vocês pintarem.
-- Eu morri, vim parar no inferno e ninguém me disse nada, não é Tiquinho?
Derrotados, eles se dirigiram para os seus assentos.
-- Fazemos o quê agora, Mariinha?
-- Eu quero vomitar!
-- Desistimos?
E se deu um silêncio. Não viram outra opção a não ser aceitar aquela situação até o fim do ano letivo, já que ninguém dera ouvidos aos seus apelos.
-- Daqui a pouco o ano acaba e tudo vai se resolver – concluiu Tiquinho.
Mas não puderam se conter quando Suzana Lilí continuava com suas histórias da lua-de-mel, seguidas de uma atividade equivocada.
-- Tem de haver um limite para tudo nesse mundo! Vamos dar um jeito nisto e é agora.
-- O que você vai fazer, Mariinha?
Ela pegou nas mãos de seu colega e se dirigiu à Suzana Lilí.
-- Oi, meus amores, o que querem desta vez? Ai, que lindinho esse lacinho no seu cabelo, Mariinha!
-- Mas um diminutivo e eu faço você engolir este laço!
-- Quem você pensa que é para falar deste modo comigo, mocinha?
-- Mariinha! E o diminutivo neste caso é um mero acaso.
-- Hein?
Mariinha disse a ela que eles não estavam mais suportando assistir às aulas. Que era difícil tolerar tantos erros cometidos por uma professora, principalmente em se tratando de uma aprendizagem infantil, que é de extrema importância.
-- Olha aqui, garotinha, todo mundo erra!
-- Claro, concordo plenamente que errar é normal. Mas no seu caso, raros são os acertos.
-- Não me interessa o que vocês pensam sobre mim.
-- Pois devia.
-- Vocês são minoria.
Para tentar amenizar, Tiquinho interrompe:
-- A gente só quer sair desta turma, professora.
-- Pois saibam que quem manda aqui sou eu. Eu sou a autoridade máxima e vocês não passam de duas crianças que mal saíram das fraldas. Não sabem de nada.
-- A gente só está querendo...
-- Nada. Vocês não têm que querer nada. Voltem para as suas mesas e não abram mais estas boquinhas, senão vão parar na direção.
Intimidados, eles voltaram arrasados. Uma semana depois, Mariinha teve um estalo.
-- Nós também estamos errados!
Mariinha se deu conta de que o restante da sala é que estava precisando de ajuda, pois os dois eram espertos o suficiente para se safar de Suzana Lilí, enquanto os outros alunos não tinham consciência que algo de muito errado estava acontecendo e que poderia afetá-los para o resto de suas vidas.
Foi então que os dois colegas reuniram todo o material que eles tinham e que comprovavam o que estavam falando e juntamente, um relatório escrito por eles mesmos - com maior interferência de Mariinha - e encaminharam para as autoridades municipais.
Após feita a análise de tudo o que foi relatado pelos alunos de Suzana Lilí, a mesma foi chamada pela autoridade competente que a deixou ciente do que estava acontecendo. Ela leu tudo o que estava escrito e não conteve as lágrimas, embora não tivesse percebido metade das acusações que pesavam sobre ela.
Não tendo outra solução para o caso, a mesma autoridade foi bem categórica:
-- Senhora Suzana Lilí, a partir de amanhã a senhora passa a prestar serviços no Estábulo Municipal.
Enquanto isso, a Mula Mumu continuava a fazer o que era preciso naquela escola fria, localizada no alto morro.

Autoria: Everson Bertucci

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