terça-feira, 9 de dezembro de 2008

MPb3

Maldição. Quando acordei, apenas uma pessoa no vagão, e duas estações adiante de onde eu deveria ter descido. Outra cidade. Rapidamente, dirigi-me aos guardas e perguntei:
-- hoje ainda passa trem?
Sorrindo, um deles me respondeu:
-- sim.
Por dentro, um alívio. Mas ele continuou sem perder o sorriso:
-- às 4h40 da madrugada.
Foi com aquele sorriso que ele me fez perceber que se passava da meia-noite e que eu fiz aquela pergunta usando o “hoje” achando que era ontem. Perguntei se tinha algum outro meio de condução para que eu pudesse voltar pra casa e outra vez ele me respondeu sorrindo:
-- táxi!
A vida se repete na estação. Eu sei, errei de novo. Devia ter perguntado se ainda tinha ônibus. Felizmente o outro guarda percebeu a situação e disse que não havia mais ônibus naquele horário e que a estação estava prestes a fechar. Nas entrelinhas: eu não poderia passar a noite ali.
Ainda meio anestesiado, me perguntava como eu podia ter dormido daquela forma sabendo do risco de passar por apuros. Dei uma volta pela redondeza. Olhei a fileira de táxis. Pensei na distância. Olhei para a carteira. Descartei a hipótese. Pensei nos antigos relacionamentos, em amigos. Não tive coragem de incomodá-los. Ando tão à flor da pele.
A noite estava ficando cada vez mais fria. As portas de um bar estavam entreabertas e o homem que lavava o chão me informou que ainda havia um ônibus que passava por volta da uma hora da madrugada e me indicou o caminho de forma cortês. Só então entendi o sorriso do guarda.
No ponto, um senhor fuma e um engraxate dorme com a cabeça enfiada entre os joelhos. Dentro dos carros que passam, pessoas nos observam... e seguem. Vários. Ao longe, dois rapazes riem e gesticulam. Entre as conversas com aquele senhor, eu me imaginava deitado num canto qualquer, caso o ônibus não passasse.
Nunca pensei que fosse ficar tão feliz vendo um ônibus vindo em minha direção. Acordei o engraxate e subi com o aquele senhor pela porta da frente. O engraxate pediu carona ao motorista e a porta traseira do veículo se abriu. O problema mais grave estava resolvido. Desci no centro da minha cidade e agora era só caminhar por cinqüenta longos minutos e estaria em casa. Eu finjo ter paciência.
Foi tudo uma questão de sintonia. Nessas horas que se entende melhor a força da revolução tecnológica. No caminho que todos caminham, ninguém andava. Apenas um mendigo dormia numa das esquinas. Meus braços começam a se mexer e logo em seguida meu corpo é tomado pelo embalo do silêncio. Eu lembro da moça bonita da praia de Boa Viagem.
Ao olhar para um espelho, não sei se côncavo, convexo ou reconvexo, vi na minha imagem refletida uma mistura exótica e exuberante de Maria Bethânia e Renato Russo. Uma constelação estelar serviu de suporte para que eles, dentro de mim, passassem de mãos dadas rumo ao relicário. Dentro dele, uma garotinha cheia de malandragem e só de calcinha saiu, descalça, cantando. Ela corria gargalhante arrastando um violão. Veio até mim e disse bem baixinho:
-- entregue este violão à moça bonita que fica atrás daquele Monte. Ela sabe como usá-lo.
E deu um toque numa das cordas do instrumento. Nem precisei chamá-la. Ao ouvir, a moça saiu detrás do Monte e a plenitude tomou conta da rua. Gotículas coloridas caíam. Entre elas, outra moça desgrenhada saiu da Mata, acompanhada de um rapaz chamado Zé. Havia uma beleza ali. Todas aquelas vozes se juntaram e ao som de bandolins continuamos caminhando.
Os poucos que passaram pela rua, dentro de seus carros bonitos, me olhavam com olhos de interrogação aos meus movimentos empolgados e minha boca que só emitia silêncio e alegria.
Encontramos um homem de vestimentas escuras, barba por fazer e jeito maluco, que disse ser necessário que eu perdesse aquele trem das 11. Até ele já sabia, embora o horário do trem não fosse bem esse. Muitas coisas inusitadas pelo caminho. A mulher com jeito de menina - meio japonesa, inteira brasileira - cantava sobre o tempo; a Evangelista que não era a cura para a loucura de ninguém; Tim Maia tomando uma xícara de chocolate quente enquanto observava A Menina da Lua fazendo um pedido à mãe:
-- mande notícias do mundo de lá...
E no segundo em que tudo parou, Ney aceitava a rosa oferecida pelo Beija-Flor e ela logo se transformou num grande campo de girassóis de amarelo intenso e eu ia e eu ia e eu ia...
Passado das duas da manhã, cheguei em casa e antes que eu pudesse convidá-los para entrar, uma Borboletinha invocada disse que eles andam pelo mundo prestando atenção em cores, divertindo gente.
Uma maquininha tão pequenininha!

Autoria: Everson Bertucci

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