terça-feira, 9 de dezembro de 2008

PEQUENAS PEDRAS

Com doze anos, numa discussão com o estranho, decidiu que aos dezoito sairia de casa. Necessitava lidar com o novo, com o desconhecido, queria tentar não ser como os de seu rededor. Só não sabia que... melhor começar de antes. Sete anos, foi aí a primeira surra, o primeiro xingamento. Diabo. Capeta. Menino correndo. Pai atrás com um cinto. Raiva. Dor. Choro.
Mas este ainda não é o começo. Na ausência do pai, era costumeiro a criança dormir com a mãe. Quando, na madrugada, este chegava, apenas um leve toque na cama fazia o pequenino acordar e correr assustado para o seu quarto, embora só tivesse três anos e muito medo da escuridão. Ah, ainda aos três, uma imagem: em meio às lágrimas da família, o menino corre sorridente em volta de um caixão de madeira ao brincar com pedrinhas com outros de sua idade.
Quando houve a decisão, foi para nunca mais vê-lo. Perguntava à mãe sobre a gravidez, a dieta, como nasceu. Respostas convincentes demais. Nenhuma pista. Filho dela com outro homem? Troca na maternidade? Adoção? Paranóia. Todos os detalhes eram confirmados pelos familiares, inclusive o detalhe de que mãe e filho perderam muito sangue e quase morreram na mesa de parto. Questionou os antigos namorados, tentou descobrir um possível amante. Nenhum vestígio.
Com um ano e meio tinha verdadeiro fascínio por passeio de carro. E lá ia a criança toda contente, desde que tivesse mais alguém junto. Sozinha com o pai, chorava como se faltasse um pedaço de si. Ninguém nunca entendeu. Nem a mãe. Não parava quieto no colo do pai. Chorava, simplesmente chorava. Nada que pudesse ser explicado.
Aos seis, choro compulsivo ao lembrar de uma imagem bonita: um velhinho bem magro que o segurava em seu colo, lhe contando histórias fantásticas e mostrando como as gaivotas se relacionam com o ar. Mas ele ainda não entendia. Apenas imagens.
Aos dez, embora sem entender direito o símbolo das alianças, o menino ficou encantado com a leveza da jóia e o branco do vestido de noiva da irmã. Encontraria no cunhado a figura que sempre quisera ter, mas a decepção veio logo. Percebera que o cunhado não era tão diferente assim daquele que era obrigado a chamar de pai. Entristecia-se sempre antes de dormir ao imaginar o tom sombrio das discussões e rezava ao velhinho magro para que nunca ela pudesse engravidar do marido. Desejou ser um pequeno felino, ao ver, certa tarde de sol, um filhote de gato deitado sobre a barriga de seu pai que passava a língua de leve sobre seu pêlo.
Com cinco anos e meio, nasce o irmão. Olhava a penúltima ninhada de coelhinhos e percebia como eles brincavam de mordidinhas uns nos outros, como uma gostosa demonstração de carinho fraternal. Mal podia imaginar que o irmão, dificultaria ainda mais sua relação com o pai. O irmão tinha uma forte ligação com o pai, o que o fez, mais tarde, perceber que sua teoria de que ninguém pudesse suportá-lo, fosse descartada. Perturbação. Questionamento. Dúvida. Como o pai se relacionara tão bem com o irmão e não com ele?
Vez ou outra, o pai dava ao filho alguns doces e chocolates... com recheios de silêncio, embalados com papeizinhos coloridos de distanciamento.
No seu oitavo aniversário, ao brincar com pedrinhas numa calçada isolada da escola, percebeu uma legião de formigas passando por baixo de suas pernas e se impressionou ao vê-las enfileiradas, cada qual carregando um pedaço de folha. Com uma das pedras, esmagou o máximo de formigas que pôde. Sentou e ficou olhando a pequena legião cadavérica. Algumas ainda agonizavam. Levantou, preparou uma espécie de ninho com alguns gravetos e folhas secas, pegou uma por uma e fez o sepultamento embaixo de uma escada. Por cima ele jogou algumas folhas de amora bem verdes e perfumadas. Foi a última vez que brincou com pedras.
Com catorze, o instinto de independência do menino ficava cada vez mais aguçado. Começou a trabalhar para ganhar pelo menos o que dava para comprar alguma coisa sem ter mendigar ao pai, embora antes já houvera feito. Foi aos nove a tentativa frustrante de vender picolé. No terceiro dia foi assaltado e o abalo veio como tempestade em dia de sol. Pensava que se tivesse um pai presente, poderia tê-lo contado o ocorrido e, talvez, resolvido o problema ou pelo menos tentado outras vezes.
De volta aos três, a imagem de um menino feliz correndo em volta de um caixão com pequenas pedras nas mãos e um sorriso alheio ao que acontecia: a grande perda.
Outro ponto condenado pelo garoto era a covardia paterna. Sempre que o pai tinha algo a falar com qualquer um deles, mandava recado pela mãe, que era uma espécie de porta-voz do marido. Se havia alguma coisa de errado que algum dos filhos havia feito: “o seu pai falou que...” frase esta que se repetiu por muitos anos através da boca da mãe. Quis e provocou várias situações para que a cena dos sete se repetisse.
Numa das brigas com o irmão, este aproveitou para fazer o que adorava: distanciá-los ainda mais. Foi o suficiente para o pai dar um tapa na cara daquele jovem, em plenos dezesseis anos. Visualizou o pai numa cova escura e úmida, enquanto saboreava uma taça de sorvete bem gelada. Apesar de ser quase impossível, evitava assistir às cenas de afeto entre o pai e o irmão. Pensou novamente em manusear algumas pedras, mas não conseguiu.
Viver sob o mesmo teto que o pai fizera cada dia daqueles dezoito anos, infindáveis. Mas felizmente chegou e a promessa feita aos doze, finalmente pudera ser cumprida. Precisava estudar, mudar o rumo de sua vida, traçar um outro destino, descobrir horizontes. Só não sabia que nada seria tão fácil como aquela promessa. Nunca mais falaria com o pai. Simples assim. Passado apagado, excluído. Vida nova sem pai, já que esta palavra era só uma nomenclatura imposta.
A primeira ligação recebida fora do pai. Monossílabas. O pai passou a fazer freqüentes ligações ao filho, saber se estava bem, se precisava de alguma coisa. Sempre estava tudo bem, não precisava de nada. Estranhamento. Humilhação? Preocupação. Conversas vagas, silenciosas. Mesmas perguntas, mesmas respostas. Como o pai podia estar preocupado? Não se pode preocupar com desconhecidos. Confusão. Medo.
Adulto, passara a perceber que o pai não aprendera a demonstrar afeição. Mas, e o irmão? Eles se amavam, viviam juntos onde quer que fossem, gostavam das mesmas coisas. Passou a observar com mais cuidado nas visitas que fazia a eles. Era o irmão quem procurava o pai e fez com que ele aprendesse a dar e a receber carinho, embora que somente a ele.
Pai, eu fiz uma coisa horrível. Eu sou uma pessoa horrível. Horrível, pai. Horrível. Eu deixei de te dar o que eu e você sempre procuramos um do outro e que nunca nos demos. Fui eu. Nunca joguei bola contigo. Nunca te abracei. Queria tanto ter aprendido a dirigir com você. Lembra? Nem isso eu deixei. Todos os passeios que você fez com o meu irmão, eu queria ter estado junto. As brincadeiras que vocês faziam... os abraços... os conselhos que eu nunca ouvi... Sempre acreditei que você não me amava, por isso não te amei. Eu não sei o que aconteceu na minha infância que me levou a te rejeitar, mas...
O que restou foram palavras ensaiadas e a imagem da única figura que ele admirou em vida e que na verdade não passara de uma incerteza: o velhinho magro no caixão de madeira, naquela tarde bonita que o fez brincar e, em outras vezes, lembrar daquela e de outras tantas imagens em que o velhinho sempre o acompanhava e o acompanhou por toda a vida.

Autoria: Everson Bertucci

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