terça-feira, 9 de dezembro de 2008

O MILAGRE DO VÔO

Essa é a história de Dona Tiana. Mulher sofrida. Criada no interior, num vilarejo chamado Mirante dos Montes. Era conhecida por todos do vilarejo. Tinham medo dela e a isolaram. Ninguém ousava dirigir-lhe palavra. Detestavam-na. Diziam que era malfadada, monstra, matadora de anjo. O que todos falavam era que Dona Tiana havia, há muito, matado seu filho. Nunca acreditaram na verdade. Nunca quiseram acreditar.
Dona Tiana sofria muito com a morte do filho. Vivia apenas por viver. Ia levando – como dizem nos vilarejos. Nunca percebeu nada em relação às pessoas. Acreditava em Deus e esperava a morte. Até que, depois de anos, quando menos esperava... engravidou. O marido de Dona Tiana não quis saber. O medo de perder outro filho era insuportável. Acovardou-se.
-- Teu pai foi viajar, mas ele volta, viu Nenê!? Ele volta – dizia ela, para o ventre.
Era menos doloroso.
O Nenê nasceu. Fraquinho, minguadinho. Dona Tiana comia o que conseguia plantar e como não tinha ninguém... teve sorte do Nenê ter nascido com vida. E assim, viviam doentes, mãe e filho. Acreditava também nas ervas que plantava, mas o caso se agravou. E numa noite de Natal ela resolveu levar seu Nenê para a cidade, para gente entendida cuidar. Foi de barco (único transporte existente). Com seu terço no pescoço e o Nenê nos braços - todo cobertinho, para não piorar ainda mais – seguiu para a capital.
O barqueiro se convenceu em levá-la de graça, por pena da criança. Fosse por ela... que morresse! Foi logo cumprimentando todo mundo, sempre com seu jeito alegre, de bem com a vida. Depois que nascera o Nenê nunca mais se permitiu um dia de tristeza. Ele era sua vontade de viver apesar da doença, das febres, da fome, de tudo que há de pequeno nesse mundo. Sua esperança era maior que qualquer doença, que qualquer mesquinharia humana.
O primeiro a cumprimentar Dona Tiana foi um bêbado. Um mendigo maltrapilho, que na bebedeira conversava com seu único amigo. Conversavam muito, brigavam até, mas não se separam. Todo mundo estranhava aquilo tudo. Ninguém via o tal amigo, somente o bêbado. Ninguém via o invisível.
-- Louco!
A partir de então a cidade passou a não vê-lo, assim como não viam Dona Tiana. E o bêbado conversava muito com seu amigo invisível, que dizia ser Papai Noel.
Dona Tiana sentou-se ao lado de uma jovem, que pelos trajes - via-se, claramente - não era dali. Nem sequer olhou para Dona Tiana. Não a conhecia, nem queria. Estava com raiva. Tinha vindo passar o natal com uma tia, mas não suportou o tédio e o nada-que-fazer do interior, por isso voltava. Além de tudo, estava muito perturbada por estar no mesmo barco que um bêbado. Até tentou sair do barco, mas o barqueiro foi bem claro.
-- A próxima é só amanhã.
Foi obrigada a seguir viagem.
-- Tudo, menos passar a noite nesse lugar – murmurou a jovem.
Na ponta do barco, um rapaz, está parado, observando o que acontece. Antes que todos entrassem, ele havia acendido velas em torno do barco e se posicionara na ponta, de onde observava tudo. Tinha um olhar fixo. Parecia hipnotizado por tudo ao seu redor.
Percebendo que a jovem não era do vilarejo, Dona Tiana perguntou:
-- A moça mora lá na capital?
A jovem limitou-se a fazer apenas um sinal positivo com a cabeça.
-- É bonito lá, né? Um dia ainda vou morar lá com meu Nenê... ver aqueles prédio, aquelas coisa bonita.
Ela ajeita o Nenê no colo e se dirige à jovem de novo.
-- A moça é bonita. Tem parente aqui na vila?
Mais uma vez o sinal afirmativo com a cabeça.
-- Veio passear?
-- Vim visitar uma tia – disse a jovem, rompendo o silêncio.
-- Quando o marido voltar, vamo morar lá na capital. Ele foi pro Rio de Janeiro, tentar a vida lá, mas ele volta qualquer dia desse. Ele volta. Volta pra conhecer o Nenê e dá uma vida melhor pra nós na cidade grande. A vida aqui é um pouco sofrida.
Nota-se em sua voz que sofre uma certa perturbação, mas não deixa isso abatê-la. Muda logo de assunto.
-- Tá bonita a noite, né? Tá fazeno uma lua bonita.
-- Tá bonita, mesmo. Viva a noite de natal! Viva o Papai Noel! Viva! – diz o bêbado, num excesso de euforia.
-- A moça tem filho?
-- Não.
-- Eu tive dois. Esse e um outro. Tão bonito. Nunca vi uma criança tão bonita como ele. Sabe aquelas criança que de tão bonita, tão bonita, parece até que num é desse mundo?! Assim era o meu menino, tão bonito que chega dava orgulho.
Enquanto fala do filho, seus olhos brilham.
-- E tão calmo, tão carinhoso, cuidadoso que só ele, nem parecia criança. Uma vez ele disse que tava com vontade comer pamonha de goiabada, numa época que não tinha milho em lugar nenhum. Muito menos goiabada, que é caro. Mas ele queria. Nesse dia de tardinha, que eu olhei pro portão de casa, ele tava sentadinho no chão mastigano alguma coisa. Que eu cheguei perto pra ver o que era, adivinha? Era uma pamoinha de goiabada bem quentinha.
Todos já estavam envolvidos com a história e com a forma que Dona Tiana contava. Pouco a pouco, inconscientemente, a história de Dona Tiana estava chamando a atenção daquela jovem.
-- Ele disse que uma moça tava passano e deu a pamonha pra ele. Eu corri na rua e só vi uma mulher de longe, de cabelo bem grande e com uma sacolinha na mão. Não deu tempo nem de ver quem era.
-- Fica quieto, Papai Noel, deixa ela contar – dizia o bêbado ao amigo invisível.
O rapaz, na ponta do barco, havia até abaixado para ouvir. Compenetrado nos olhos daquela mulher.
-- Outro dia, tinha um enteado meu lá em casa, criança também, eles tava brincano no quintal. E em sítio, cêis sabe: tem galinha, tem porco, boi, tudo que é tipo de bicho. Meu enteado pegou uma pedrinha na mão e tacou com tudo na cabecinha dum patinho. O bichinho esperneou, estrebuchou e logo ficou durinho no chão. Meu menino ficou só olhano. Eu nem briguei. Criança! Nem sabia o que tava fazeno. Meu menino foi até o patinho, colocou ele entre as mão, no quentinho, e quando ele abriu... o bichinho começou a se mexer. No fim do dia já tava bãozinho. Ninguém falou um isto que fosse. Tudo as coisa que ele falava ou queria, sempre acontecia. Um dia ele disse que ia voar. Eu nem liguei. Todas criança tem dessas coisa que vai voar. Ele disse que ia voar pro céu, o danado.
Dona Tiana não se contém de emoção, respira fundo e silencia. Só se ouve o barulho das águas.
-- E então?...
Dona Tiana ajeita o Nenê no colo e prossegue.
-- Na noite de natal daquele ano, eu tava assano um pedaço de porco pra gente cear, quando percebi que tava tudo quieto por demais. Procurei na casa inteira e não achei o menino. Corri pra fora com a lamparina, que nem uma doida e quando eu olhei pra cima, ele tava em cima do telhado com os bracinho aberto. E antes memo que eu pudesse gritar... ele voou... meu menino voou... voou e nunca mais voltou. Se num tivesse voado, hoje ele seria um moço feito.
A jovem seca discretamente uma lágrima, o rapaz apenas ouve e o barqueiro continua remando, não acredita nessas histórias. Para ele só existia uma verdade; ela tinha matado o filho, o resto era tudo invenção.
-- Tudo isso aconteceu numa noite de natal, como essa, moça.
O bêbado lutava contra o sono para continuar ouvindo Dona Tiana. Porém, continuava a falar com seu amigo invisível – o Papai Noel – como ele mesmo dizia.
-- Presente? Que Presente? Ah! Tá, eu falo. Olha, ele tá dizeno que vai dar um presente pra senhora nesse natal – dirigindo-se a Dona Tiana.
Estava cada vez mais louco, pensaram.
-- Ele tá dizeno que a senhora vai gostar muito – foi só dizer isso e ser vencido pelo sono.
A jovem, assim como o rapaz, estava muito comovida com a história e se sentiu muito pequena e mesquinha diante daquela mulher.
-- Nossa! Que história! Como a senhora suportou tudo isso? Eu não teria agüentado.
Antes de responder, Dona Tiana pede à jovem que segure o Nenê para que possa pegar a mamadeira dele e a prepara, enquanto diz toda orgulhosa:
-- Ele não era pra esse mundo, não. Era uma criança especial. Não ia conseguir viver aqui, moça. Demorou, mas hoje eu entendo que ele precisava voar.
E olhando bem dentro dos olhos daquela jovem, perceptivelmente fragilizada:
-- Tem gente que precisa voar, moça. E ele voou.
Ao ouvir isso, a jovem descobre o rostinho do Nenê, para vê-lo, e percebe que ele está morto. Involuntariamente, solta um grito.
-- Que foi, moça? Tá passano bem?
O bêbado se mexe, mas o sono é mais forte que o grito. O barqueiro até pára de remar por alguns segundos. O rapaz continua calmo.
-- O seu bebê é muito bonito, mas ele está morto.
O barqueiro volta a remar. Mais um morto nas mãos daquela louca, pensava ele.
Dona Tiana deixa cair a mamadeira no chão e pega bruscamente o Nenê do colo da jovem.
-- Deixa de brincadeira, moça. Isso é coisa que se diga? Ele não é bonito, não. Meu Nenê é feio e só tá com um pouco de febre. Bonito era o outro.
Notando a mamadeira caída, o rapaz a envolve entre as mãos.
-- Minha senhora, o seu bebê está morto.
-- Meu Nenê num tá morto, não, moça. O meu marido vai voltar, meu Nenê vai ficar bãozinho e vai ser tudo como era.
Elas discutem. A jovem tem certeza que o Nenê está morto. Ela sentiu seu pequeno corpo gelado, duro.
No meio daquela discussão, o rapaz volta para o ponta do barco e fica olhando para o pequeno bebê morto.
-- Eu sei que é difícil, mas o seu bebê foi pro céu, como o outro.
-- A moça tá doida. Meu Nenê não vai pro céu... não agora. Num vou deixar – pega a mamadeira. – mama, meu Nenê, mama.
E no ápice do seu desespero:
-- Mama, vamo mamar um pouquinho? Mostra pra moça que o Nenê tá bãozinho, mostra. Mama, por favor. Ele vai mamar, cêis vão ver.
A jovem, sem saber o que fazer, começa a chorar. Sua vontade é de abraçar aquela mãe.
-- Mama, por favor, mama. Mama, pelo amor do Pai, todo misericordioso, eu te imploro, meu Nenê, mama. Mama pra sarar, mama. Se o Nenê num mamá logo, o leite vai acabá azedano.
E o Nenê, a razão de viver de Dona Tiana, começa a mamar.
-- Mas ele estava...
-- Dormino, moça. Dormino como um anjinho.
O rapaz se levanta, sobe na ponta do barco, se equilibra nas pontas dos pés e... definitivamente, voa.
As velas se desfazem ao som de uma cantiga de ninar, sussurrada por Dona Tiana.

Autoria: Everson Bertucci

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