domingo, 29 de março de 2009

ESTUDO ELABORADO A PARTIR DO LIVRO "O QUE É PÓS-MODERNO", de Jair Ferreira dos Santos

“desmaterializando a obra de arte no fim do milênio
faço um quadro com moléculas de hidrogênio
fios de pentelho de um velho armênio
cuspe de mosca pão dormido asa de barata torta
meu conceito parece à primeira vista
um barrococó figurativo neo-expressionista
com pitadas de art-nouveau pós-surrealista
calcado na revalorização da natureza morta
minha mãe certa vez disse-me um dia
vendo minha obra exposta na galeria
meu filho isso é mais estranho que o cu da jia
e muito mais feio que um hipopótamos insone
pra entender um trabalho tão moderno
é preciso ler o segundo caderno
calcular o produto bruto interno
multiplicar pelo valor das contas de água luz e telefone
rodopiando na fúria do ciclone
reinvento o céu e o inferno
minha mão não entendeu o subtexto
da arte desmaterializada no presente contexto
reciclando o lixo lá do cesto
chego a um resultado estético bacana
com a graça de deus e basquiat
nova iorque me espere que eu vou já
picharei com dendê de vatapá
uma psicodélica baiana
misturarei anáguas de viúva
com tampinhas de pepsi e fanta uva
um penico com água da última chuva
ampolas de injeção de penicilina
desmaterializando a matéria
com a arte pulsando na artéria
boto fogo no gelo da sibéria
faço até cair neve em teresina
com o clarão do raio da silibrina
desintegro o poder da bactéria”

Bienal[1]. Nada melhor para iniciar uma pequena introdução de pós-moderno. Zeca Baleiro faz de “bienal” uma obra baseada em elementos da pós-modernidade. A música trata justamente dos novos elementos da arte, da nova conjuntura artística, de novos conceitos até e filosóficos de questionar o mundo. Exemplos disso estão nas galerias de arte com esculturas elaboradas com materiais antes sem o menor valor artístico. Casos como o do artista[2] que colocou um mictório de cabeça para baixo e intitulou “A fonte”, causando um certo espanto aos visitantes, levando a comentários como o da mãe, citada na letra acima

meu filho isso é mais estranho que o cu da jia
e muito mais feio que um hipopótamos insone

Essas formas da pós-modernidade, através desses objetos estranhos trazem fundamentos filosóficos levantando questões sociais. O caso do mictório transformado em fonte nos faz questionar o que estamos bebendo, o que estamos consumindo, nos fazendo lançar um outro olhar sobre as coisas.


“sem amor, sem ninguém[3]
sem nenhum, sem cem
sem bondade, sem maldade
sem saudade, sem alguém
sem agora, sem passado
sem futuro, sem presente
sem memória
sou http://www.sem/
sou www.sem

sem sim, sem não
sem baião, nem de dois
sem tom, sem som
sem batom, sem cachaça
sem graça, sem dó
sem pó, sem pirraça
sem feijão, sem arroz
sem teto, sem chão

é o w do w do w ponto plugado
e nesse jogo inventado
eu fico sem ponto sem

sem amor, sem ninguém
sem Rimbaud, sem cem
sem queijo, sem rato
sem beijo, sem Lacan
sem Freud, sem manhã
sem sina, sem menino, sem menina
sem karma, sem cama, sem drama, sem gasolina
sem comédia, sem a mídia, sem a média
sou ponto sem, sem cem/ sem sol, sem uol
sem anzol, sem mar lar

é o w do w do w ponto plugado
e nesse jogo inventado
eu fico sem ponto sem

sem verbo, sem advérbio
sou transitivo direto
e nesse verbo de amor e de paixão
tão só, tão tão
tão só, tão tão
tão só, tão tão
tão só, tão tão
tão só”

As relações pessoais estão cada vez mais impessoais, não há o convívio, a conversa, as histórias contadas por um tio mais velho. A televisão passou a fazer o “diálogo” com o indivíduo. Só que nesse “diálogo” somente a televisão fala. O indivíduo apenas recepciona e, na maioria dos casos, nem questiona: aceita. As relações afetivas estão cada vez mais complicadas. Parece que há uma deficiência em alguma parte do organismo que não dá pra identificar onde está. É como na quadrilha[4] em que “João que amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém”, mas que no fundo estava procurando alguém para amar

“O indivíduo na condição pós-moderna é um sujeito blip, alguém submetido a um bombardeio maciço e aleatório de informações parcelares, que nunca formam um todo, e com importantes efeitos culturais, sociais e políticos”.

Jair Ferreira dos Santos fala de forma metalingüística sobre o Pós-Moderno. O texto é totalmente pós moderno. Linguagem coloquial, jovem, signos etc para compor um texto agradável, fácil e inteligente de se ler.

“os signos de pós-modernismo estão nas ruas, no mass media (...) new-wave, cintos meteleiros, rock punk, por aí vai”.

É um texto que se aproxima do leitor. O leva a identificação.
Poesias também pós-modernistas podem abordar o tema através de elementos e signos, como poderemos notar a seguir:


espelho ALTERADO[5]

luzes piscantes
máquinas frenéticas
hálito alcoólico
nicotina pulsante
movimento reflexo
pensamento travado
identidade passageira
escuridão dolorida

estou só
mas não
estou só

por quê as máquinas dançam?
as máquinas pensam?
essas máquinas pensam?
a música pára?

e eu
incapaz de vivenciar
a luz piscante
a dança robótica
a música disritmada
percebo que a máquina
sou eu

meu existir máquina
não permite...
mas uma máquina tem existência?
como odeio existir máquina
como é triste existir máquina
como dói querer deixar de existir máquina

me percebo máquina
querendo interagir
com as luzes piscantes
com a música disritmada
com a dança robótica
nicotina e álcool
dos que não são máquinas
e a questionar o por quê

estou só
mas não
estou só

e a máquina eu
procura a máquina outra
olhares cruzados
uma máquina?
aparentemente
um contato?
o olhar diz sim
o toque diz sim
a voz da máquina outra
breca a máquina eu
não era o todo
a máquina outra não era máquina
a máquina sou eu

estou só
mas não
estou só

a máquina eu
no seu medo
do que não é máquina
foge
será que a máquina outra
não era mesmo máquina?
ou será que a máquina eu
no seu medo
não percebeu?

estou só
mas não
estou só

máquina pensa?
de tanto perceber e pensar e sentir e questionar
máquina não-máquina
me percebo só me percebo

paro máquina
paro não-máqu


“o pós-modernismo chegou aos jornais e revistas, caiu na boca da massa. Um novo estilo de vida com modismos e idéias, gostos e atitudes nunca dantes badalados, em geral coloridos pela extravagância e o humor, brota por toda parte. Micro, videogame, vídeo-bar, FM, moda eclética, maquilagem pesada, new wave, ecologia, pacifismo, esportivismo, pornô, astrologia, terapias, apatia social e sentimento de vazio – estes elementos povoam a galáxia cotidiana pós-moderna, que gira em torno de um só eixo: o indivíduo em suas três apoteoses – consumista, hedonista, narcisista.”

A poesia espelho ALTERADO dá a idéia de um homem-máquina. Alguém que não sabe direito o que está acontecendo ao seu redor, que tem muitas informações a serem processadas de forma rápida, fazendo uma relação com a máquina que age por manipulação. Ao mesmo tempo esse alguém se vê questionando ser ou não ser máquina. Alguém num ambiente com outros, aparentemente, iguais e, ao mesmo tempo, totalmente diferentes.

e eu
incapaz de vivenciar
a luz piscante
a dança robótica
a música disritmada
percebo que a máquina
sou eu


Quem é a máquina, ele ou os outros?
Esse alguém se vê refletido num espelho alterado, um espelho trincado, em que a imagem refletida, além de não ser real, é uma imagem distorcida, fazendo questionar qual imagem existe realmente: a de dentro do espelho ou a que está fora. As estrofes da poesia seguem essa mesma lógica. A idéia de que é uma coisa só, mas que refletida nesse espelho trincado fica mais ou menos da forma que está.
A máquina-homem começa a se questionar o por quê das coisas que a cerca

por quê as máquinas dançam?
as máquinas pensam?
essas máquinas pensam?
a música pára?

E ao se questionar, não consegue interagir com as luzes piscantes, a dança robótica, a música disritmada.

me percebo máquina
querendo interagir
com as luzes piscantes
com a música disritmada
com a dança robótica
nicotina e álcool
dos que não são máquinas

A impressão que se tem é que o eu lírico em questão está em crise de identidade e o que ele gostaria é de não ter que questionar, de simplesmente aceitar o mundo que o cerca, assim como os outros que interagem, que não pensam, que não questionam, simplesmente vivem como o mundo ao seu redor os molda. Justamente por pensar em sua condição, este eu lírico não sabe se ele é a máquina ou se os outros é quem são.
Outro ponto importante, é a questão da solidão, muito presente na pós-modernidade. O se sentir só perante tanta coisa. Uma solidão dolorida.

estou só
mas não
estou só

E para fugir dela, máquina ou não, o eu lírico parte em busca de alguém para que, de certa forma, se complete, se encontre.

e a máquina eu
procura a máquina outra

Ao encontrar alguém, percebe que este outro só se interessa por parte do seu eu, ou seja, só pela aparência e não pelo todo.

olhares cruzados
uma máquina?
aparentemente
um contato?
o olhar diz sim
o toque diz sim
a voz da máquina outra
breca a máquina eu
não era o todo

Ao se perceber realmente lidando com algo desconhecido, a máquina (eu lírico) foge da resposta ao se questionar se ela é quem é máquina ou se é o outro. O que ocorre é que não há uma resposta. A construção da poesia é tão robótica quanto o tema abordado. A impressão é que tudo é robotizado, até quando se fala da solidão parece que a máquina não consegue terminar a frase. No exemplo estou só mas não estou só, quando aparece quebrado na estrutura poética fica ambígua, nos dá a impressão que ele começa a construir uma frase e pára, ou seja, quando diz estou só e vai justificar com o mas não estou só é como se parasse na metade de frase a acaba constatando realmente que está só, nos dando a ambigüidade robótica. Outro trecho é construído de forma parecida.

me percebo só me percebo

A frase acima dá duas impressões: de que a máquina acaba realmente se percebendo solitária, se lermos da seguinte forma me percebo só, me percebo. Ou simplesmente, se percebendo como um todo, se pontuarmos de outra forma me percebo, só me percebo

Ao se questionar o tempo todo máquina, não-máquina, o ser ou o não ser e sem sucesso com uma resposta, temos a impressão que todos esses questionamentos se quebram como uma máquina e ao mesmo tempo parece que o espelho se quebrou de vez e a resposta ficou na parte que caiu.

paro máquina
paro não-máqu

Na música interpretada por Simone, também há traços de solidão e individualismo, o universo do novo, da internet, da tecnologia, do passageiro.

sem amor, sem ninguém
sem Rimbaud, sem cem
sem queijo, sem rato
sem beijo, sem Lacan
sem Freud, sem manhã
(...)
tão só, tão tão
tão só, tão tão
tão só, tão tão
tão só, tão tão
tão só”


No pós-moderno o hedonismo é pregado pelos meios como forma de satisfação do indivíduo, talvez até, como forma de fuga ao real, de conceitos existenciais como a solidão, a descoberta do eu.

luzes piscantes
máquinas frenéticas
hálito alcoólico
nicotina pulsante
movimento reflexo
pensamento travado

É justamente nesse ritmo de festa, luzes piscantes, o álcool, nicotina, entretenimento. O indivíduo se vê bombardeado por informações que o deixa sempre ocupado, sempre entretido, anestesiado para questões mais profundas.

“O hedonismo – moral do prazer (não de valores) buscada na satisfação aqui e agora – é sua filosofia portátil. (...) as sociedades pós-industriais, planejadas pela tecnociência, programam a vida social nos seus menores detalhes, pois nelas tudo é mercadoria paga a uma empresa privada ou estatal (...) além disso, há o apelo constante do novo.”

É a busca pelo prazer que a TV e a publicidade vendem. É o consumo exacerbado.

“a massa pós-moderna, no entanto, é consumista, classe média, flexível nas idéias e nos costumes. Vive no conformismo em nações sem ideais e acha-se seduzida e atomizada (fragmentada) pelos mass media, querendo o espetáculo com bens e serviços no lugar do poder. Parcitipa, sem envolvimento profundo, de pequenas causas inseridas no cotidiano (...) Se a modernidade teve intensa mobilização política (duas guerras mundiais, revoluções, guerras anticoloniais), a pós-modernidade se interessa antes pelo transpolítico: liberação sexual, feminismo, educação permissiva, questões vividas no dia-a-dia. Normalmente o indivíduo pós-moderno evita a militância fogosa e disciplinada. Ele é frio, prefere movimentos com fins práticos, nos quais a participação é flutuante e personalizada. Nada de lutas prolongadas ou patrulhamento ideológico.” Pág. 92

Jair Ferreira dos Santos com suas características marcantes como na utilização de metáforas, o uso da linguagem coloquial faz com se seu texto se torne agradável e abrangente ao abordar não só as questões artísticas como também questões individuais em relação a sexualidade na pós-modernidade. Ele fala da permissividade, da diversidade sexual, da pílula e de como se lida com tais assuntos com o advento da pós-modernidade.

“No lugar da família guardiã moral, apoio psicológico, a pós-modernidade propõe ligações abertas tipo amizade colorida. O swing é experiência validade e a educação evolui para o permissivo. A pílula faz recuar o poder paterno. O rei pênis e seus dois assessores impõem menos o sexo genital ante a vaga homossexual e transexual em ascensão. Moral branda, amor descontraído. Sai o tango, entra o rock “amor sem preconceitos, sexo total”.

Com a pós-modernidade, o mundo digital ganhou um amplo espaço. Vivemos no simulacro, no efêmero. Com a câmera, a realidade passou a ser outra, uma realidade fragmentada, um tanto ilusória. O indivíduo busca viver uma realidade similar aos de seus personagens televisivos, baseado no amor eterno, na busca incansável pela felicidade plena, como se a vida fosse fragmentada, assim como na TV. Jair cita o caso da mãe que prefere mostrar a filha na foto (no simulacro) do que exibir a filha real. O signo se torna mais interessante do que o real, pois “o simulacro faz o real parecer mais real, dá-lhe uma aparência desejável”.

“o humor, outra sedução massiva pós-moderna, sabor dos tempos, descontrai e desdramatiza o social. Na arte moderna, ria-se com o absurdo, assunto sério. Atualmente, o lance é rir sem tem~são, descrispar-se, desencucar-se”.

O autor aponta também para a o individualismo do sujeito. Diz que com todas essas características pós-modernas, o narcisismo – o “eu me amo, eu me amo, eu não consigo viver sem mim” está cada vez mais dominante entre os indivíduos e o que sensações isto pode causar neles.

“A condição pós-moderna é precisamente a dificuldade de sentir e representar o mundo onde se vive. A sensação é de irrealidade, com vazio e confusão. (...) no indivíduo, se juntam vazio e colorido na danceteria, tédio e curiosidade ante um filme pornô, frieza e fascinação ante os dígitos na tela de um computador, banalidade e excitação no shopping center”

Quando se pergunta o por quê disso, Jair já antecipa uma resposta:

“Porque no mundo pós-moderno, objetos e informação, circulando em alta velocidade, são descartáveis. Da mesma forma, os sujeitos também produzem personalidades descartáveis”.

As relações se tornaram descartáveis. Não se tolera mais, não se procura compreender o outro, se algo está desagradando, simplesmente se rompe o laço e se descarta. Há pouco espaço para o diálogo, para a discussão e compreensão.
Na literatura muitos autores criaram formas pós-modernas em suas formas narrativas. José Saramago aboliu a forma padrão de narrar. Ele não usa a pontuação conforme as regras, fazendo com que o leitor se atente mais na leitura exigindo um esforço maior para a compreensão; os parágrafos são imensos, atingindo uma, duas ou mais folhas; não exclamações, nem interrogações em suas frases. Hilda Hilst mistura a narrativa da história com os diálogos de personagens, causando um certo desconforto para um leitor desatento. É preciso prestar muita atenção para uma maior absorção da história. Julio Cortazar faz o leitor entrar num labirinto narrativo, num jogo de vai e volta hipertextual, onde o leitor vai seguindo as pistas dadas na narrativa para juntar um quebra cabeça e entender o todo, fazendo com que o começo da história esteja no meio do livro e sua continuação esteja antes e assim sucessivamente.

CIDADEZINHA QUALQUER[6]


Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.


A referência de Drummond tende a ficar somente na poesia. Nos últimos anos as “cidadezinhas” vêm se transformando em metrópoles com casas entre prédios, ou melhor, as casas sendo substituídas por prédios, edifícios cada vez mais altos e mais pomposos. Não vemos mais mulheres entre laranjeiras e sim mulheres invadindo o mercado de trabalho. Nada mais é devagar, nem o homem, nem o cachorro, tampouco o burro. O que se percebe é a correria. Nas ruas, nos trens, nos metrôs. A correria constante contra o tempo, contra a morte, contra algo que nem se sabe ao certo o que é. No entanto, talvez, o que continuará presente nessa era pós-moderna é a expressão final do eu-lírico: “Eta vida besta, meu Deus”.
[1] Letra de Zeca Baleiro, interpretada pelo próprio e com participação especial de Zé Ramalho.
[2] Marcel Duchamp
[3] http://www.sem/. Letra de Zé de Riba e Romildo Soares, interpretada por Simone.
[4] ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia Poética. São Paulo:Record, 2002, p. 193
[5] BERTUCCI, Everson – poesia inédita
[6] ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia Poética. São Paulo:Record, 2002, p. 63

Escrito por Everson Bertucci

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