quarta-feira, 8 de abril de 2009

ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE OS LIVROS "A VIDA QUE NINGUÉM VÊ", de Eliane Brum e "PRIMEIRAS ESTÓRIAS", de João Guimarães Rosa

A VIDA QUE EU VI


A narrativa de Eliane Brum em seu “A Vida que Ninguém Vê” é de uma simplicidade bem próxima à de seus personagens. A partir das histórias narradas no livro, Eliane lança um olhar perceptivo sobre o povo brasileiro – os muitos homens e mulheres esquecidos, invisíveis à sociedade, os que não tem um status que os faça “existentes”.
Confesso que me identifiquei muito com as histórias e de como elas são contadas. Sempre que vejo alguém na rua - seja mendigo, trombadinha, maltrapilho – ou na televisão – um bandido, um assassino – me vem uma curiosidade de saber que história se esconde por detrás daquelas barbas sujas, daquelas roupas rasgadas, daquelas cicatrizes. Vontade de saber como foi que nasceram, quem os criou, que escolas freqüentaram, que professores os ensinaram, com o que eles brincaram e por que estão onde estão. Vontade de ouvir todas as histórias e tentar compreender um pouco mais de mim e de nós.
Quando morei em Sorocaba, em 2001, conheci a mendiga Maria. Ela era negra e ficava sentada na porta de uma agência do Banco Real. Sempre que eu passava pra trabalhar, lá estava Maria com seus papelões, algumas vasilhas, um pedaço de cobertor. Ficava olhando as pessoas que passavam. Maria tinha o cabelo bem curto, quase raspado, a cabeça bem redonda deixava seu rosto ainda mais bonito. O que chamava a atenção era o olhar que Maria lançava sobre as pessoas que por ali passavam. Era um olhar que transmitia tranqüilidade, sossego, harmonia. Eu passava todos os dias e Maria sempre estava lá lançando seus olhares pra mim. Me passava uma paz, que eu sentia uma vontade imensa de ir lá conversar com ela.
Vez ou outra alguém dava uma moeda para Maria, mas a impressão que eu tinha é que ela estava, e sempre esteve, naquela calçada não para receber algo de alguém, e sim para dar. Maria nos dava a sua tranqüilidade, a sua serenidade, o seu olhar maternal, a sua vida. Sempre tive vontade de me aproximar dela, conversar, saber quem ela era, de onde vinha, se teve filhos, foi casada. Nunca o fiz. Acho que tive um certo receio de me envolver, de despertar algo nela, algum tipo de esperança. Acho até que tive medo de desfazer na minha cabeça a imagem bonita que eu tinha de Maria, e aliás, nunca soube se o seu era Maria. Dei esse nome a ela porque era tanta coisa boa que me transmitia, e isso me fez tão bem, que pra mim ela não poderia ser simbolizada, senão pelo nome Maria.

Esta minha “Maria” se assemelha muito ao Geppe Coppini, de Eliane Brum. O mendigo que está para Anta Gorda, como “Maria” está para Sorocaba.

“Todos em Anta Gorda têm algo a dizer sobre Geppe Coppini. Todos. (...) O único mendigo de Anta Gorda. Mas não um mendigo qualquer. (...) Geppe Coppini é uma incógnita porque nunca pediu nada. Não há ninguém, em toda a Anta Gorda, que possa afirmar que Geppe tenha pedido alguma coisa.”

Logo que li a primeira história de “A Vida que Ninguém Vê”, lembrei de “Primeiras Estórias”, de Guimarães Rosa. Eliane tem um jeito muito próximo ao dele de perceber o que está por trás das histórias. Se retirarmos as crônicas-reportagens do livro de Eliane e entregarmos para alguém ler, separadamente, fica difícil uma definição entre realidade e ficção. Algumas histórias têm um tom muito próximo ao da criação literária.
Ainda em Geppe Coppini aparecem umas pinceladas de “loucura”:

“(...) Passou a alisar o tronco das árvores com as mãos por horas a fio. E, ao contrário da tropa de irmãos, decidiu que não trabalharia. Louco, louco. O menino está variado, foi o que o povo disse. Foi despachado para sanatórios na capital. Fugia e voltava a pé para o vale, um passo atrás do outro com seus tamancos de madeira, uma parada aqui e acolá para acariciar um árvore conhecida”

Lembrou-me muito “Sorôco, sua mãe, sua filha”, em que a narrativa surge de forma a questionar o que é loucura, levando em consideração a complexidade humana.

“(...) A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. (...) A filha – a moça – tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum. (...) A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam. Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. (...) Parecia enterro. Todas ficavam de parte (...) por causa daquelas transmodos e despropósitos. (...) O que os outros diziam (...) que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. (...) Por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.”

Depois de um tempo a mãe de Sorôco soltou-se do braço dele e principiou a cantar a canção que a filha cantava e que ninguém entendia:

“(...) Ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar. Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de (...) fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades”.

Sorôco - sem saber direito o que se passa dentro de si – acaba entregando sua mãe e sua filha ao trem, ao hospício, ao desconhecido.

“(...) Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta”. Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perde o de si, parar de ser. (...) Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. (...) E foi sem combinação (...) todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. (...) foi um caso sem comparação.

De Geppe Coppini, Eliane continua:

“(...) Quando passou dos 60 anos (...) conseguiu uma aposentadoria. (...) Geppe tem até carteira de trabalho. Orgulhosamente em branco (...) E desde então passou a repetir: (...) “O governo é um estúpido! Nunca trabalhei na minha vida e ainda assim me paga!””

Ambos lançam um olhar sobre como estamos sujeitos ao olhar dos outros, ao julgamento. É assim com o “louco” gaúcho do cavalo-de-pau.

“Dizem que ele é louco. (...) Os patrões e até os peões dizem que ele é louco. Será? (...) Seu nome é Vanderlei Ferreira. Filho de pobre, jamais foi à escola. (...) Dorme escondido num posto de gasolina, às vezes na casa de um tio.”

Vanderlei vivia montado em seu cavalo-de-pau, um cabo de vassoura, adorava animais e não perdia um rodeio. Sempre foi tido como louco: por sua maneira de vestir e por seu cavalo-de-pau. Mas nas conversas com Eliane, na entrevista, Vanderlei revela quem realmente ele é, independentemente do que pensam sobre ele. Olhando de perto para Vanderlei, Eliane pergunta sobre seu cavalo e ele logo responde:

“Meu cavalo é uma vassoura. Queria que fosse o BT Faceiro do Junco (vencedor do Freio de Ouro de 1995), mas é uma vassoura”

Vanderlei diz que quando está montado em seu cabo de vassoura, sonha que está montado num cavalo de verdade. Se vê desfilando, fazendo provas. Ele conta que até começou a trabalhar como peão, mas quiseram que ele levantasse às 4h pra fazer coisa que podia fazer às 6h. Não deu certo. Vanderlei conta que quando a montaria acaba, sente uma tristeza no coração, uma tristeza funda. Questionado se já montou num cavalo de verdade, ele diz que sim e que é bem melhor do que montar num cabo de vassoura. E quando Eliane lhe diz que tem gente que acha que ele é louco...

“A verdade é que quem acha que eu sou louco não raciocina.”

Temas como preconceito social, discriminação e hipocrisia permeiam as duas histórias que se seguirão. É assim com a Eva, de Eliane, e a Mula-Marmela, de Guimarães Rosa. Ambas são excluídas, abandonadas à própria sorte. Estas duas mulheres, com histórias e contextos diversos, têm suas vidas levadas a um mesmo destino. Mas a maneira como elas lidam com o preconceito e a discriminação são distintas. Eva luta a vida inteira contra todos os que a tentam impedir de ser gente; Mula-Marmela se fecha em si, na sua solidão. Mesmo banida, ela passa toda a sua trajetória ajudando e cuidando daqueles que a baniram. Não a toa, Guimarães Rosa intitula seu conto como “A Benfazeja”. Vejamos agora um pouco dessas duas “criminosas”.

“Uma mulher que cometeu um crime que a humanidade não perdoa. (...) à Eva, o mundo reservava apenas um destino: o de ser coitada. (...) Decidiu que não seria coitada. Que o mundo que se virasse com isso. Que o mundo achasse outras vítimas para preencher seu horror. Este foi o crime de Eva. Pelo qual jamais a perdoaram. (...) Como ela, a deficiente (...) ousava renegar a mão da caridade, irmã da pena, prima da hipocrisia?como ousava ela, a anormal, encarar de igual para igual os normais?”

O crime de Eva foi o de lutar com o mundo pelo direito de igualdade, mesmo sendo deficiente física. O crime de Eva foi ter entrado na escola e com suas mãos retorcidas, ter aprendido a escrever entre as dores e o sangue. O crime de Eva foi acreditar ser capaz de reescrever seu destino. O crime de Eva foi ter se reinventado.
Aos 17 anos, Eva gritou:

“Se eu derramar comida para comer, deixem que eu derrame. Seu eu derrubar as coisas quando eu pegar, deixem que eu derrube. Se eu cair, deixem que eu me levante.”

Eva queria fazer, mesmo que com as dificuldades que lhe cabiam, as coisas mais simples que qualquer ser humano poderia fazer e como ser humano, Eva tinha seus sonhos.

“Queria ensinar como se podia escrever com as mãos em chagas. E fazer das mãos retorcidas asas. Mas muitas eram as almas disformes que se colocariam entre Eva e o mundo. (...) Como vai escrever no quadro-negro tremendo desse jeito? Como vai ensinar com uma letra tão feia? Não vê que isso só vai incomodar? Não entende que entre você e uma menina normal vão escolher a normal?”

Mesmo cercada por todos os lados, Eva fez faculdade, se formou e conseguiu ocupar salas de aula como educadora. Mas...

“Quando descobriam que Eva não era coitada, que empregá-la não era um ato de caridade, tudo mudava. Quando descobriam que Eva era capaz, que era preciso competir com a sua mente, não com seus tremores, tudo se alterava. A comiseração do início transmutava-se em ódio. (...) Eva é mulher, negra e pobre. Eva treme as mão. Tudo isso até aceitam. O que não lhe perdoam é ter recusado a ser coitada. (...) a odeiam porque não podem sentir pena dela”.

Agora vamos acompanhar o crime de uma outra mulher. O crime de Mula-Marmela. O crime desta mulher foi o de ter matado um homem, não um homem qualquer; mas o Mumbungo. Acompanhe.

“Sei que não intentaram na mulher; nem fosse possível. (...) A mulher – a malandraja, a malacafar, suja de si, misericordiada, tão em velha e feia, feita tonta, no crime não arrependida – e guia de um cego. (...) soubessem-lhe ao menos o nome. Não; pergunto, e ninguém o inteira. Chamavam-na de a “Mula-Marmela”, somente, a abominada. (...) E nem desconfiaram, hem, de que poderiam estar em tudo e por tudo enganados? (...) Seu antigo crime? (...) que o assassinado por ela era um hediondo, o cão de homem, calamidade horribilíssima, perigo e castigo para os habitantes deste lugar. (...) O cego Retrupé era filho do finado marido dela, o “Mumbungo”, que a Mula-Marmela assassinara.”

Esse Mumbungo era o homem mais violento e sanguinário da cidade. Matava simplesmente pelo prazer que ver a vítima “caretear”. Gostava do sabor de sangue. Homem perverso e temido por todos.

“E por causa dele, todos estremeciam (...) Era o punir de Deus, o avultado demo, - o “cão”. E, no entanto, com a mulher, davam-se bem, amavam-se. Como? O amor é a vaga, indecisa palavra. (...) O Mumbungo queria à sua mulher, a Mula-Marmela, e, contudo, incertamente, ela o amedrontava. (...) Talvez pressentisse que só ela seria capaz de destruí-lo, de cortar, com um ato de “não”, sua existência. (...) Talvez adivinhasse que em suas mão, dela, estivesse já decretado e pronto o seu fim. (...) o Mumbungo, se vivia bem com a mulher, a Mula-Marmela, e se ela precisava dele, como os pobres precisam uns dos outros, por que, então, o matou? Vocês nunca pensaram nisso, e culparam-na. (...) Mas, quando ela matou o marido, sem que se saiba a clara e externa razão, todos aqui respiraram, e bendisseram a Deus”.

O crime de Mula-Marmela foi ter matado o homem que a todos mataria, se possível fosse. O crime de Mula-Marmela foi ter matado o homem que todos sentiam vontade de matar, mas que nunca tiveram coragem. E ela - mesmo amando este homem do fundo de sua alma - o matou; pelo bem de todos; pelo seu próprio mal; pela sua própria dor.

“Mas não a recompensaram, (...) ao contrário: deixaram-na no escárnio de apontada à amargura, e na muda miséria, pois que eis. (...) a mulher tinha de matar, tinha de cumprir por suas mãos o necessário bem de todos, só ela mesma poderia ser a executora – da obra altíssima, que todos nem ousavam conceber, mas que, em seus escondidos corações, imploravam. Só ela mesma, a Marmela, que viera ao mundo com a sina presa de amar aquele homem, e de ser amada dele (...) que sentia mais que todos, talvez, e, sem o saber, sentia por todos, pelos ameaçados e vexados, pelos que choravam os seus entes parente, que o Mumbungo, mandatário de não sei que poderes, atroz sacrificara. (...) Sei que vocês não (...) reparam como essa mulher anda, e sente, e vive e faz. (...) Ela olha tudo com singeleza de admiração.. mas vocês não podem gostar dela. (...) Dizem-na maldita”.

Foi por se compadecer da dor daqueles que o Mumbungo havia matado por simples prazer, que Mula-Marmela, mesmo o amando, resolve abdicar da sua felicidade em nome dos parentes das vítimas que o Mumbungo faria, se vivo continuasse.

“Vocês, creio, gostariam de que ela também se fosse, desaparecesse no não, depois de ter assassinado o marido”

É então que Guimarães Rosa lança a questão: “o que seria das pessoas nas mãos de Retrupé se a Mula-Marmela também tivesse se matado?”, já que naqueles tempos ele “ainda não estava cegado”. Retrupé era igual o pai: sanguinário, perverso, cruel; o cão.

“Só aí, se deu que, em algum comum dia, o Retrupé cegou, de ambos aqueles olhos. Souberam vocês como foi? Procuraram achar? Sabem, contudo, que há leites e pós, de plantas, venenos que ocultamente retiram, retomam a visão, de olhos que não devem ver. (...) Talvez, ele não precisasse de danado morrer como o Mumbungo, seu pai. Talvez, me pergunto, o próprio Mumbungo descarecesse de ser morto, se acaso, por ponto, alguém pensasse antes nessas ervas cegadoras”.

Cego, o Retrupé não podia fazer mal a ninguém. Mesmo assim, Mula-Marmela passou a cuidar dele. Acompanhava-o onde quer que ele fosse, mesmo com seus resmungos, seus desatinos; sempre ajudando-o. Se correspondiam através de sussurros, gemidos, silêncios.

“Parece que seu temor fazia-o murmurar queixumes, súplicas, à Mula-Marmela. E, no entanto, ela cada dia para com ele mais se abranda, apiedada de seu desvalor.”

Mula-Marmela tinha para com o Retrupé um amor de mãe. Ele era o filho que ela nunca teve. Ele nutria por ela um amor filial . Mas sempre fugiam das demonstrações. Cada um guardava para si seus sentimentos. O Retrupé sempre sussurrava seus pedidos de perdão à Marmela e ela o ouvia “sem parecer que”. Foi assim até o Retrupé envelhecer e morrer.

“Não viram, na madrugada, quando ele lançou o último mau suspiro. Sim, mas o que vocês crêem saber, isto seriamente afirmar: que ela, a Mula-Marmela, no decorrer das trevas, foi quem esganou estranguladamente o pobre-diabo, que parou de se sofrer. (...) Só não a acusaram e prendera, porque maior era o alívio de a ver partir. (...) Sem lhe oferecer ao menos qualquer espontânea esmola, vocês a viram partir. (...) Vocês, de seus decretantes corações, a expulsavam”

Mesmo velha, quase à beira da morte, sozinha, resignada, ferida, maltratada e ignorada por todos, Marmela não perde sua essência. E na sua particular forma de fazer o bem ao próximo sai da cidade carregando consigo uma incumbência dolorosa.

“E, nunca se esqueçam, tomem na lembrança, narrem aos seus filhos, havidos ou vindouros, o que vocês viram com esses seus olhos terrivorosos, e não souberam impedir, nem compreender, nem agraciar. De como, quando ia a partir, ela avistou aquele um cachorro morto, abandonado e meio já podre, na ponta-da-rua, e pegou-o às costas, o foi levando --: se para livrar o logradouro e lugar de sua pestilência perigosa, se para piedade de dar-lhe cova em terra, se para com ele ter com quem ou quê se abraçar, na hora de sua grande morte solitária?”

E como o próprio narrador sugere:

“Pensem, meditem nela, no entanto.”

Com relação à discriminação, preconceito e, principalmente, à hipocrisia social contida tanto no universo de Eva, quanto no de Mula-Marmela e das almas deformadas que as cercam, cabe mais um trecho de “A Benfazeja”.

“Cada qual com sua baixeza; cada um com sua altura.”

Felizmente, nem todas as histórias são contadas com almas deformadas. Existe espaço também para almas que se reinventam e transformam outras almas. É assim com Eliane, a professora que lança um olhar além do rótulo de enjeitado, abilolado, malcheiroso de Israel, um rapaz de 29 anos que vivia num canto ou noutro da vila Kephas. Refletido no olhar dessa professora, Israel se deixa descobrir, e descobrindo Israel, Eliane também se descobre.

“Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro. (...) E quando perceberam, Israel estava no interior da escola. (...) Cruzou a porta e pintou bonecos de papel. Israel estava todo dentro do olhar da professora. (...) Israel, o paria, tinha se transformado em Israel, o amigo. (...) E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel. E as crianças, que têm na escola um intervalo entre a violência e a fome, descobriram-se livres de todos os destinos traçados nos olhos de Israel.”

Apesar da existência de “Evas” se confrontando com muitas “almas deformadas” - que sabemos transitar por estes confins - nos conforta saber que há também muitas “Elianes” lançando seus olhares para pessoas como “Israel”, capazes – ambos – de transformar os olhares que os rodeiam.

Eliane – agora a jornalista - nos contagia com sua vontade de mudar o mundo. Essa mudança pode não ocorrer de forma esperada, mas com certeza vai despertar alguma coisa em quem lê. Não dá pra não se ver refletido naquelas vidas que ninguém vê. Não dá pra olhar para um sinal vermelho e não se lembrar da menina Camila. Até quando ficaremos dentro dos nossos carros bonitos com o vidro fechado para estas “Camilas” que nos cantam por socorro todos os dias? Até quando iremos fugir do conhecimento da miséria dessas “Camilas”, miséria nossa? Esperaremos que essas “Camilas” morram para que nunca mais assombrem nossas janelas? A Camila que morreu, fazia a diferença cantando nos cruzamentos da cidade para pedir seus trocados.

“Seus hinos se espalharam pelas sinaleiras e, mesmo depois de sua morte, seguem ecoando pela boca de outras Camilas. (...) Os versinhos de Camila cruzaram o ar semearam as esquinas. Não se iluda. (...) Haverá sempre uma delas tentando arrombar o vidro do carro com a urgência de sua fome.”

Numa infeliz metáfora, Camila morreu afogada, debatendo-se como fez durante toda a vida.

Quando aborda o tema liberdade, Eliane nos coloca dentro de um retrato, um retrato preto e branco, um retrato triste, apagado. O retrato de um macaco que não conhecia o mundo além da sua jaula. Tinha o instinto, mas ficou limitado à liberdade dentro da jaula. Passou a vida inteira lutando para abrir o cadeado e quando o fez, quando se viu diante da imensidão do mundo do lado de fora da jaula... entrou num restaurante e ficou bebericando um copo de cerveja. Eliane faz uma irônica relação do zoológico para com o macaco e do apartamento para com o homem. De como tais seres se relacionam com seus respectivos “cativeiros”.

“Pode (o homem) então voltar para o apartamento financiado em 15 anos satisfeito com sua vida. Abrir as grades da porta contente com seu molho de chaves e se aboletar no sofá em frente à TV. Acorda na segunda-feira feliz para o batente. Feliz por ser homem. E por ser livre”.

A ironia de Eliane é carregada de reflexão, sua função alertar, questionar de forma positiva, pois Eliane – assim como muitos – sonha em mudar o mundo, aos pouquinhos, ou melhor, aos pedacinhos. O espírito dessa mulher está presente na alma do velhinho Oscar Kulemkamp, o homem que transforma tudo o que para os outros não tem utilidade; todos os “restos” abandonados por terceiros. A partir destes “restos”, Eliane, Oscar, Adail e outros tantos personagens reais, sonham com...

“Uma Pasárgada onde bonecas cansadas, fotografias de crianças que já se deixou de amar e cartões de aniversário que se foram não virem lixo. Um mundo onde nem coisas nem pessoas sejam descartáveis. Onde nada nem ninguém fique obsoleto depois de velho, quebrado ou torto. Um mundo onde todos tenham igual valor. E a nenhum seja dado uma lixeira por destino”.


Com linguagens diferentes, particulares, Eliane Brum e João Guimarães Rosa –num misto de realidade e ficção - nos faz refletir sobre a existência de um ponto de vista, de um olhar para algo e conseguir enxergar o não-óbvio, perceber além da superficialidade, com um olhar mais aprofundado e questionador.
São histórias que nos despertam o desejo de entender o porquê dessas pessoas estarem à margem da sociedade. Por que são excluídas tão brutalmente do convívio com o mundo? Eliane Brum também não responde a nenhuma destas perguntas. Lança outras;
Quem é Geppe Coppini? Quem é Adail, Antonio, Camila, Eva, Frida? E como ela mesma sugere:
-- “Vocês decidem”.



Autoria: Everson Bertucci

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